São Paulo, sexta, 9 de outubro de 1998

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Gaudí - a catedral submersa e encantada

CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial

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Antônio Gaudí (1852-1926) repetiu a anedota do náufrago espanhol que chegou à praia e perguntou: "Hay gobierno acá?" E como havia, declarou: "Entonces, soy contra!"
O "governo" existente, ao tempo em que Gaudí começou a trabalhar, era uma pasta de estilos decadentes que procuravam preencher o vazio deixado pelas linhas góticas e renascentistas.
Indisciplinado como Picasso, Miró e Dalí, impetuoso como Goya, detalhista como Velasquez e religioso como Murilo, ele resumia a alma espanhola.
Na própria Barcelona há a Catedral de Santa Eulália, de 1289, exemplo do gótico catalão que influenciaria não apenas o gótico espanhol -Toledo, Santiago de Compostela-, mas todo o gótico meridional, cujo fascínio ele aprendera por meio de Viollet-le-Duc.
Não começou impondo idéias. Recusava-se a seguir a boiada, mas precisava de um Médici ou de um Júlio 2º.
O novo mecenas surgiu na pessoa de um industrial, o conde Guell, admirador da obra de Ruskin. O mesmo Ruskin que abalou a formação moral e intelectual de Marcel Proust.
Simplificado ao extremo, Ruskin era um crítico de arte que se apaixonou pelo gótico, no qual ele via (como Gaudí veria mais tarde) o simultâneo refinamento da arte e da moral.
Mas ninguém estava interessado em moral naquela Barcelona que se preparava para ser a capital da Espanha Republicana.
O protetor de Gaudí deu-lhe dinheiro e carta branca -ao contrário de Júlio 2º, que policiava Michelangelo dia e noite e só lhe dava migalhas para a sobrevivência.
Guell possuía uns terrenos então afastados do centro da cidade, deixou que o arquiteto fizesse o que entendesse -mais ou menos como JK fez com Niemeyer.
O Parque Guell é, hoje, depois da Sagrada Família, o ponto turístico mais visitado de Barcelona. É um conjunto que alguns consideram divino, e outros -a maioria-, horroroso.
Sem necessidade de atender a um mercado, sem a preocupação de agradar, Gaudí teve a oportunidade que poucos artistas ao longo da história tiveram: a de fazer o que realmente queria.
O parque logo se revelou uma inutilidade: é apenas um amontoado de casas, fontes e jardins exaustivamente fotografados e tidos, em linhas gerais, como uma extravagância.
Evidente que, sem Guell, não haveria a Sagrada Família -e esse é, sem dúvida, o seu principal mérito. Barcelona abriga, ainda, outras obras de Gaudí, casas de burgueses ricos e aristocratas decadentes, que figuram nos mapas da cidade como pontos de visitação obrigatória.
São versões práticas dos seus conceitos iniciais, ou seja, de que a cabeça do artista não pode ter compromisso com a estética em voga ou com o mercado.
Até aí, seria um arquiteto curioso, um Arcimboldi de pedra, uma espécie de mulher barbada do circo. Mas houve a Sagrada Família.
Como em todas as grandes catedrais, tudo começou com uma capela que mais tarde seria ampliada para uma réplica da Basílica de Loreto. Surgiram divergências no orçamento e na própria concepção da obra, o arquiteto inicial (Francisco Villar) foi fritado pela comissão encarregada das obras.
Seguiu-se Juan Martorell, que achou a tarefa problemática e tirou o corpo fora, indicando para substituí-lo um de seus ajudantes: Antônio Gaudí.
Assumindo o trabalho em 1883, ele estava maduro e tinha obstinação para saber que iria fazer realmente uma catedral.
Há aquela anedota do outro espanhol, não o náufrago rebelde, mas o operário de visão. O rei foi visitar as obras da catedral que estava construindo e perguntou a um operário: "O que está fazendo?" "Estou levando estas pedras para a fundação", respondeu o operário.
O rei fez a mesma pergunta a outros trabalhadores e sempre recebia a resposta: estou fazendo a massa, estou cavando um buraco, estou levando isso para botar ali.
Até que o rei fez a pergunta a um rapazinho que levava nos ombros uma pedra: "Que está fazendo, rapaz?" O rosto do operário se iluminou: "Senhor, estou fazendo uma catedral!"
Antônio Gaudí estava fazendo uma catedral: a sua. Todas as loucuras lhe foram perdoadas. Embora inacabada, a obra resulta numa espécie de castelo de areia, formada por pingos de terra molhados, parece que se desmancharão à primeira chuva. Seguindo as linhas essenciais do gótico, ele exagerou na verticalidade, abolindo as linhas horizontais em primeiro lugar e, depois, as linhas retas.
Tudo é sinuoso e oblíquo, a obra começou a crescer como um vegetal imenso em que cada galho procurava a luz -a luz do alto. Os detalhes nascem da própria pedra que palpita e vibra como se feita de carne.
Para melhor acompanhar os trabalhos, foi morar numa tenda ao lado da obra. Vivia como um asceta.
Numa tarde de 1926 foi atropelado, ali mesmo, por um carro que passava e cujo motorista se distraíra olhando as imensas torres que se levantavam contra o luminoso azul do céu catalão. Mas os projetos estavam prontos e detalhados, as obras continuaram sem ele.
Ao contrário da tradição das catedrais, ela continuará sendo dele -uma catedral assinada, como a de Debussy, submersa e encantada, tão fora do tempo que se transformou num extravagante símbolo do próprio tempo.



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