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Gaudí - a catedral submersa e encantada
CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial
²
Antônio Gaudí (1852-1926)
repetiu a anedota do náufrago
espanhol que chegou à praia e
perguntou: "Hay gobierno
acá?" E como havia, declarou:
"Entonces, soy contra!"
O "governo" existente, ao
tempo em que Gaudí começou
a trabalhar, era uma pasta de
estilos decadentes que procuravam preencher o vazio deixado
pelas linhas góticas e renascentistas.
Indisciplinado como Picasso,
Miró e Dalí, impetuoso como
Goya, detalhista como Velasquez e religioso como Murilo,
ele resumia a alma espanhola.
Na própria Barcelona há a
Catedral de Santa Eulália, de
1289, exemplo do gótico catalão
que influenciaria não apenas o
gótico espanhol -Toledo, Santiago de Compostela-, mas todo o gótico meridional, cujo
fascínio ele aprendera por meio
de Viollet-le-Duc.
Não começou impondo idéias.
Recusava-se a seguir a boiada,
mas precisava de um Médici ou
de um Júlio 2º.
O novo mecenas surgiu na
pessoa de um industrial, o conde Guell, admirador da obra de
Ruskin. O mesmo Ruskin que
abalou a formação moral e intelectual de Marcel Proust.
Simplificado ao extremo, Ruskin era um crítico de arte que se
apaixonou pelo gótico, no qual
ele via (como Gaudí veria mais
tarde) o simultâneo refinamento da arte e da moral.
Mas ninguém estava interessado em moral naquela Barcelona que se preparava para ser
a capital da Espanha Republicana.
O protetor de Gaudí deu-lhe
dinheiro e carta branca -ao
contrário de Júlio 2º, que policiava Michelangelo dia e noite
e só lhe dava migalhas para a
sobrevivência.
Guell possuía uns terrenos então afastados do centro da cidade, deixou que o arquiteto fizesse o que entendesse -mais
ou menos como JK fez com Niemeyer.
O Parque Guell é, hoje, depois
da Sagrada Família, o ponto
turístico mais visitado de Barcelona. É um conjunto que alguns consideram divino, e outros -a maioria-, horroroso.
Sem necessidade de atender a
um mercado, sem a preocupação de agradar, Gaudí teve a
oportunidade que poucos artistas ao longo da história tiveram: a de fazer o que realmente
queria.
O parque logo se revelou uma
inutilidade: é apenas um
amontoado de casas, fontes e
jardins exaustivamente fotografados e tidos, em linhas gerais, como uma extravagância.
Evidente que, sem Guell, não
haveria a Sagrada Família -e
esse é, sem dúvida, o seu principal mérito. Barcelona abriga,
ainda, outras obras de Gaudí,
casas de burgueses ricos e aristocratas decadentes, que figuram nos mapas da cidade como
pontos de visitação obrigatória.
São versões práticas dos seus
conceitos iniciais, ou seja, de
que a cabeça do artista não pode ter compromisso com a estética em voga ou com o mercado.
Até aí, seria um arquiteto curioso, um Arcimboldi de pedra,
uma espécie de mulher barbada
do circo. Mas houve a Sagrada
Família.
Como em todas as grandes catedrais, tudo começou com uma
capela que mais tarde seria ampliada para uma réplica da Basílica de Loreto. Surgiram divergências no orçamento e na
própria concepção da obra, o
arquiteto inicial (Francisco Villar) foi fritado pela comissão
encarregada das obras.
Seguiu-se Juan Martorell, que
achou a tarefa problemática e
tirou o corpo fora, indicando
para substituí-lo um de seus
ajudantes: Antônio Gaudí.
Assumindo o trabalho em
1883, ele estava maduro e tinha
obstinação para saber que iria
fazer realmente uma catedral.
Há aquela anedota do outro
espanhol, não o náufrago rebelde, mas o operário de visão. O
rei foi visitar as obras da catedral que estava construindo e
perguntou a um operário: "O
que está fazendo?" "Estou levando estas pedras para a fundação", respondeu o operário.
O rei fez a mesma pergunta a
outros trabalhadores e sempre
recebia a resposta: estou fazendo a massa, estou cavando um
buraco, estou levando isso para
botar ali.
Até que o rei fez a pergunta a
um rapazinho que levava nos
ombros uma pedra: "Que está
fazendo, rapaz?" O rosto do
operário se iluminou: "Senhor,
estou fazendo uma catedral!"
Antônio Gaudí estava fazendo uma catedral: a sua. Todas
as loucuras lhe foram perdoadas. Embora inacabada, a obra
resulta numa espécie de castelo
de areia, formada por pingos de
terra molhados, parece que se
desmancharão à primeira chuva. Seguindo as linhas essenciais do gótico, ele exagerou na
verticalidade, abolindo as linhas horizontais em primeiro
lugar e, depois, as linhas retas.
Tudo é sinuoso e oblíquo, a
obra começou a crescer como
um vegetal imenso em que cada
galho procurava a luz -a luz
do alto. Os detalhes nascem da
própria pedra que palpita e vibra como se feita de carne.
Para melhor acompanhar os
trabalhos, foi morar numa tenda ao lado da obra. Vivia como
um asceta.
Numa tarde de 1926 foi atropelado, ali mesmo, por um carro que passava e cujo motorista
se distraíra olhando as imensas
torres que se levantavam contra o luminoso azul do céu catalão. Mas os projetos estavam
prontos e detalhados, as obras
continuaram sem ele.
Ao contrário da tradição das
catedrais, ela continuará sendo
dele -uma catedral assinada,
como a de Debussy, submersa e
encantada, tão fora do tempo
que se transformou num extravagante símbolo do próprio
tempo.
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