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ARNALDO JABOR
O que queria nos dizer o criminoso do cinema?
Vamos ao cinema em busca de
ilusão. De repente, sai da tela a
realidade brasileira querendo ser
"realidade americana", como
uma pavorosa "rosa púrpura de
sangue"!
"Uma arma na mão e uma bala
na cabeça", foi o slogan dessa noite terrível. Mateus Meira, nosso
primeiro "serial killer" rico e
branco, não queria ser criminoso
brasileiro: queria ser criminoso
importado. É como se o jovem assassino dissesse: "Eu não sou vocês; eu sou eles!"
Esse rapaz é paranóico, pirado
de pedra, sem dúvida; mas quem
dá conteúdo à sua loucura? As
imagens elegantes da morte do cinema americano, que transformou o crime em um bailado ritual, em uma dança erótica.
Quem o arma? O comércio incontrolável de máquinas mortíferas,
que nem Bill Clinton consegue
coibir.
E contra o que ele reage, de que
ele foge? Deste nosso mundo mixo, deste "cinema brasileiro"
cheio de assaltantes sujos, matando por miséria. Ele quis matar
nosso mundo de apenas "espectadores". Ele quis mais; além de
"olhar", ele quis "ser".
Inverteu-se a cena; da tela onde
passava o filme, vieram as balas, a
luz veio contra a escuridão. É incrível que muita gente negue a influência do cinema nos assassinatos. Já estamos tão acostumados
com o massacre colorido que nem
percebemos o absurdo.
Quando o Código Hays acabou
em Hollywood, a sexualidade
continuou esbatida, ausente dos
filmes. Só floresceu a liberdade da
violência total, substitutivo puritano para o sexo. E a morte tem
de ser cada vez mais colorida,
mais bruta, mais feérica...
Por que ele matou espectadores
e não compradores de supermercados? Por que matou os que sonhavam no escuro? Queria despertá-los, como um Brecht de sangue? Queria outro tipo de cinema?
Sem dúvida, ele era um documentarista. Ele era contra a ficção; queria um "cinema-verdade". Mateus poderia ter atirado
na tela, matando o filme. Mas atirou nos passivos "voyeurs" da
crueldade alheia. É como se dissesse: "Não se brinca com a morte,
não se exorciza a morte com catarses purificadoras, pois um dia
ela chega".
Será que ele ia se suicidar? Acho
que não. Creio que ele, mesmo
louco, queria aparecer, ser preso
mesmo ("Não opôs resistência,
parecia uma criança, quando o
agarrei", disse uma testemunha).
Ele queria o alívio da lei, da prisão. Como dizem os canibais
americanos quando chega a polícia: "O socorro chegou" ("Heal arrived").
Os "serial killers" americanos
têm orgulho da polícia. No crime
americano, o assassino quer ser
reconhecido como sujeito. Lembro-me do garoto de "In Cold
Blood" ("A Sangue Frio"), de Trumam Capote, que tinha pronto
um discurso para o dia em que
ganhasse o Oscar; um discurso
modesto, emocionado, que ele ensaiava diante do espelho.
Em Mateus, no fundo escuro de
sua cabeça, havia um ensinamento. Ele quis nos ensinar algo com
sua loucura, pois todo paranóico é
moralista. Todo louco tem fome
de realidade e, nisso, a morte tem
uma grande serventia: ela é brutalmente palpável, concreta, nega
todo discurso.
É difícil entender, mas muito
suicida está em busca de uma vida melhor, assim como muito assassino busca alívio para a culpa.
Talvez o ensinamento seja mais
trágico ainda: de que nada mais
se explica, de que não há mais
"teoria crítica" para nada, de que
não há mais conserto nem esperança de que algo vai melhorar.
Ele queria nos ensinar que não
valemos nada, que nem em shoppings de luxo, no escuro, comendo
pipoca, estamos a salvo. Ele queria nos ensinar que o neocrime
não é uma reafirmação da importância do bem, com sinal trocado.
Como um Mallarmé ("Le Mal-
Armé" -ah ah... perdão, concretistas e lacanianos!...), ele quer nos
ensinar que nosso pobre "jogo de
dados não vai abolir acaso algum"; um acaso sangrento sempre surgirá. Ele quer nos ensinar
que nossas mortes não são mais
sagradas ou com penacho.
Só ficamos em pânico porque o
rapaz era rico e branco. As revistas perguntam: Por quê? Toda semana há uma chacina nas periferias. Ninguém pergunta nada.
Há uma semelhança entre esse
rapaz do cinema e o outro que decepou a cabeça do colega na Febem. Ambos querem silenciar os
discursos do "bem" contra o
"mal". Querem ir além desse velho maniqueísmo. Como disse o
menino da Febem: "Desci o machado na garganta dele e aí já
era!..." Ou seja, não houve nada:
apenas uma decapitação. Não
houve nada outro dia no cinema:
apenas um filme mais realista e
violento.
Esse neocrime é uma terceira
coisa; é um mal que não se quer
transgressivo. É o mal banal. Chama-se de "mal" por falta de outro
nome.
De qualquer forma, chegou o
crime do novo milênio, pré-configurando a frieza dos extermínios
que virão. Não há soluções para o
crescimento da população -perguntem a qualquer economista. A
frieza dos futuros extermínios está
sendo gestada. Esses criminosos
pós-modernos falam uma verdade profunda que teimamos em ignorar, com nosso humanismo fracassado: o fim da tragédia já
aconteceu.
A tragédia quente, que provoca
indignação, está superada, está
"out"; só nos restará a tragédia
fria, que não emociona mais, a
tragédia imóvel como a da África.
De tanto chorar inutilmente, ficaremos impassíveis diante da dor.
Na Índia, hoje, há 10 milhões de
desabrigados com o ciclone... "E
daí? Danem-se...", pensamos.
Perdoe meus negros prognósticos, mas os extermínios vão virar
uma prática social para regular o
mercado de excedentes. Em vez de
queimar produtos, queimarão
consumidores. Já não é espantosa
a ausência de compaixão de nossas elites?
Contemplam impassíveis a miséria, com a mesma frieza com
que Mateus Meira produziu sua
"rosa de sangue" no cinema. Ainda fingimos sofrer um pouco, fingimos acreditar que haverá solução para um país, mas teremos de
planejar o futuro levando em conta o "insolúvel". A sobrevivência
moderna precisa do crime.
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