São Paulo, Terça-feira, 09 de Novembro de 1999
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ARNALDO JABOR
O que queria nos dizer o criminoso do cinema?

Vamos ao cinema em busca de ilusão. De repente, sai da tela a realidade brasileira querendo ser "realidade americana", como uma pavorosa "rosa púrpura de sangue"!
"Uma arma na mão e uma bala na cabeça", foi o slogan dessa noite terrível. Mateus Meira, nosso primeiro "serial killer" rico e branco, não queria ser criminoso brasileiro: queria ser criminoso importado. É como se o jovem assassino dissesse: "Eu não sou vocês; eu sou eles!"
Esse rapaz é paranóico, pirado de pedra, sem dúvida; mas quem dá conteúdo à sua loucura? As imagens elegantes da morte do cinema americano, que transformou o crime em um bailado ritual, em uma dança erótica. Quem o arma? O comércio incontrolável de máquinas mortíferas, que nem Bill Clinton consegue coibir.
E contra o que ele reage, de que ele foge? Deste nosso mundo mixo, deste "cinema brasileiro" cheio de assaltantes sujos, matando por miséria. Ele quis matar nosso mundo de apenas "espectadores". Ele quis mais; além de "olhar", ele quis "ser".
Inverteu-se a cena; da tela onde passava o filme, vieram as balas, a luz veio contra a escuridão. É incrível que muita gente negue a influência do cinema nos assassinatos. Já estamos tão acostumados com o massacre colorido que nem percebemos o absurdo.
Quando o Código Hays acabou em Hollywood, a sexualidade continuou esbatida, ausente dos filmes. Só floresceu a liberdade da violência total, substitutivo puritano para o sexo. E a morte tem de ser cada vez mais colorida, mais bruta, mais feérica...
Por que ele matou espectadores e não compradores de supermercados? Por que matou os que sonhavam no escuro? Queria despertá-los, como um Brecht de sangue? Queria outro tipo de cinema?
Sem dúvida, ele era um documentarista. Ele era contra a ficção; queria um "cinema-verdade". Mateus poderia ter atirado na tela, matando o filme. Mas atirou nos passivos "voyeurs" da crueldade alheia. É como se dissesse: "Não se brinca com a morte, não se exorciza a morte com catarses purificadoras, pois um dia ela chega".
Será que ele ia se suicidar? Acho que não. Creio que ele, mesmo louco, queria aparecer, ser preso mesmo ("Não opôs resistência, parecia uma criança, quando o agarrei", disse uma testemunha). Ele queria o alívio da lei, da prisão. Como dizem os canibais americanos quando chega a polícia: "O socorro chegou" ("Heal arrived").
Os "serial killers" americanos têm orgulho da polícia. No crime americano, o assassino quer ser reconhecido como sujeito. Lembro-me do garoto de "In Cold Blood" ("A Sangue Frio"), de Trumam Capote, que tinha pronto um discurso para o dia em que ganhasse o Oscar; um discurso modesto, emocionado, que ele ensaiava diante do espelho.
Em Mateus, no fundo escuro de sua cabeça, havia um ensinamento. Ele quis nos ensinar algo com sua loucura, pois todo paranóico é moralista. Todo louco tem fome de realidade e, nisso, a morte tem uma grande serventia: ela é brutalmente palpável, concreta, nega todo discurso.
É difícil entender, mas muito suicida está em busca de uma vida melhor, assim como muito assassino busca alívio para a culpa. Talvez o ensinamento seja mais trágico ainda: de que nada mais se explica, de que não há mais "teoria crítica" para nada, de que não há mais conserto nem esperança de que algo vai melhorar.
Ele queria nos ensinar que não valemos nada, que nem em shoppings de luxo, no escuro, comendo pipoca, estamos a salvo. Ele queria nos ensinar que o neocrime não é uma reafirmação da importância do bem, com sinal trocado.
Como um Mallarmé ("Le Mal- Armé" -ah ah... perdão, concretistas e lacanianos!...), ele quer nos ensinar que nosso pobre "jogo de dados não vai abolir acaso algum"; um acaso sangrento sempre surgirá. Ele quer nos ensinar que nossas mortes não são mais sagradas ou com penacho.
Só ficamos em pânico porque o rapaz era rico e branco. As revistas perguntam: Por quê? Toda semana há uma chacina nas periferias. Ninguém pergunta nada.
Há uma semelhança entre esse rapaz do cinema e o outro que decepou a cabeça do colega na Febem. Ambos querem silenciar os discursos do "bem" contra o "mal". Querem ir além desse velho maniqueísmo. Como disse o menino da Febem: "Desci o machado na garganta dele e aí já era!..." Ou seja, não houve nada: apenas uma decapitação. Não houve nada outro dia no cinema: apenas um filme mais realista e violento.
Esse neocrime é uma terceira coisa; é um mal que não se quer transgressivo. É o mal banal. Chama-se de "mal" por falta de outro nome.
De qualquer forma, chegou o crime do novo milênio, pré-configurando a frieza dos extermínios que virão. Não há soluções para o crescimento da população -perguntem a qualquer economista. A frieza dos futuros extermínios está sendo gestada. Esses criminosos pós-modernos falam uma verdade profunda que teimamos em ignorar, com nosso humanismo fracassado: o fim da tragédia já aconteceu.
A tragédia quente, que provoca indignação, está superada, está "out"; só nos restará a tragédia fria, que não emociona mais, a tragédia imóvel como a da África. De tanto chorar inutilmente, ficaremos impassíveis diante da dor. Na Índia, hoje, há 10 milhões de desabrigados com o ciclone... "E daí? Danem-se...", pensamos.
Perdoe meus negros prognósticos, mas os extermínios vão virar uma prática social para regular o mercado de excedentes. Em vez de queimar produtos, queimarão consumidores. Já não é espantosa a ausência de compaixão de nossas elites?
Contemplam impassíveis a miséria, com a mesma frieza com que Mateus Meira produziu sua "rosa de sangue" no cinema. Ainda fingimos sofrer um pouco, fingimos acreditar que haverá solução para um país, mas teremos de planejar o futuro levando em conta o "insolúvel". A sobrevivência moderna precisa do crime.


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