São Paulo, sexta-feira, 09 de novembro de 2001

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CINEMA/ESTRÉIA

"LAVOURA ARCAICA"

Filme ambicioso, de um diretor com coragem de arriscar, se insurge contra o conformismo

Luiz Fernando Carvalho faz obra de arte

Divulgação
A atriz Simone Spoladore reza em cena do filme "Lavoura Arcaica', adaptação do romance homônimo de Raduan Nassar, de 1975, que é ambientado em uma família de origem libanesa no interior do Brasil


DA SUCURSAL DO RIO

Nos últimos anos, o cinema nacional pouco tem feito em matéria de arte. Há filmes com carpintaria dramática decalcada da televisão e de Hollywood. Há outros de produção correta. Ou com reconstituição de época razoável. São festejados por conseguirem chegar ao fim sem chatear muito. Predomina a pasmaceira.
"Lavoura Arcaica" prova o quanto esse marasmo tem de conformismo. É um filme ambicioso, que demanda a atenção do espectador. Tem quase três horas, cenas lentas e longas, a ação se desenrola em planos temporais simultâneos, um jorro de prosa literária contrasta com silêncios pesados e composições em que o preto é a cor dominante.
Mais: começa com uma comprida cena de masturbação, desenvolve-se num passado impreciso, trata de uma cultura minoritária (a dos imigrantes libaneses), mal sai do ambiente de uma fazenda e tem a desfaçatez de enfrentar temas universais como amor, trabalho, tempo.
"Lavoura Arcaica" é uma adaptação fiel do romance homônimo de Raduan Nassar, de 1975. Muito da sua expressividade tem origem no livro, que nas últimas décadas recebeu da crítica a pátina que consagra os clássicos. Mas o filme tem existência artística própria. Ele percorre o romance e encontra sua própria poética.
O personagem central é André (Selton Mello), o quinto dos sete filhos de uma família patriarcal. Como o filho pródigo da parábola evangélica, ele sai e volta para casa, onde é recebido com uma festa. É uma ovelha desgarrada e tenebrosa. André não abandona o lar em busca dos prazeres do mundo. Foge porque não pode conviver com a ordem do Pai (Raul Cortez), que a condensa em longos sermões à mesa.
A lei do Pai é aquela que, segundo Freud, funda a civilização, a proibição do incesto. Ao contrário de Édipo, que desconhece sua origem, e portanto não sabe que mata o pai e casa com a mãe, André tem consciência da interdição, do tabu. Ele faz amor com Ana (Simone Spoladore) sabendo que ela é sua irmã.
O diretor Luiz Fernando Carvalho capta o corpo de André em primeiro plano, imerso em sombras. É do corpo, da pulsão erótica primeva, da natureza irracional, que brota a revolta anárquica. À realidade do corpo do filho o diretor contrapõe o discurso do Pai.
Os sermões do Pai tresandam a racionalidade e sabedoria. Instigam a família ao trabalho, à paciência, à submissão aos ciclos de um tempo eternamente circular, sem saída. É uma prosa compacta, na qual é difícil deslindar o que é imposição do que é argumento.
No universo mítico de "Lavoura Arcaica" cabe às mulheres um papel ambíguo. A Mãe (Juliana Carneiro da Cunha) é fonte de amor e ternura. Mas o afeto é percebido pelo filho como sufocação, apêndice da repressão paterna. Ana é mostrada descobrindo a sexualidade. Para André, porém, ela não tem vida própria. É um objeto.
Nessa visão, as mulheres ficam com as sequências mais constrangedoras de "Lavoura Arcaica". Quando a mãe dá adeus ao filho na janela, e Ana é comparada, numa metáfora primária, à pomba que André captura numa armadilha, o filme resvala para o melodrama naturalista.
O embate entre a civilização e seu descontente é travado pelos machos, pai e filho, numa conversa à mesa. Por meio da palavra, o forte subjuga o destrambelhado. A sequência, para a qual o filme converge, é de grande impacto. Graças a Raul Cortez. A sua atuação em "Lavoura Arcaica", o melhor de sua carreira cinematográfica, comporta várias demãos de significado.
Na cena do embate final, o ator estampa no rosto a expressão do depositário de tradições imemoriais, o susto do pai com o filho rebelado, a tentativa de entendimento e a reiteração da lei. Até quando erra, Raul Cortez acerta. Ele quase troca "milênios" por "milhares" e retoma a fala com garra redobrada, transmitindo o erro para o personagem.
Selton Mello não atinge a contundência econômica nem a profundidade exibidas por Raul Cortez. Tem somente um momento de transcendência, quando, derrotado pelo Pai, encarna a volúpia da capitulação.
Apesar da vitória obtida pelo Pai, a ordem não triunfa. Ela explode na lasciva dança de Ana. A tragédia irrompe, e o clã se desagrega para que impere a Lei. A sequência, no entanto, é demasiado rápida, atenuando o desejado efeito catártico.
A poética do filme está menos no enredo e mais nas cores, na oposição entre espaços fechados e abertos, entre sombra e luz, nos enquadramentos preciosos e nas frestas abertas pela trilha-sonora de Marco Antônio Guimarães.
A fotografia de Walter Carvalho se apoia em composições de Caravaggio e Rembrandt. Obtém uma textura de emotividade agônica. Essas imagens, combinadas com a música, sobretudo na primeira meia hora de filme, são responsáveis por uma beleza abstrata ímpar. Mas muitas vezes a solenidade das cenas naturalistas empana as abstratas. A justaposição entre umas e outras dá origem a um filme que, no todo, tem algo de cerebrino.
Luiz Fernando Carvalho fez um filme que enche os olhos e se insurge contra o conformismo. É um diretor com algo a dizer e coragem de arriscar. O seu "Lavoura Arcaica" é obra de arte. (MARIO SERGIO CONTI)


Lavoura Arcaica
    
Direção: Luiz Fernando Carvalho
Produção: Brasil, 2001
Com: Selton Mello, Raul Cortez, Simone Spoladore
Quando: a partir de hoje no Espaço Unibanco e no Unibanco Arteplex




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