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CINEMA/ESTRÉIA
"LAVOURA ARCAICA"
Filme ambicioso, de um diretor com coragem de arriscar, se insurge contra o conformismo
Luiz Fernando Carvalho faz obra de arte
Divulgação
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A atriz Simone Spoladore reza em cena do filme "Lavoura Arcaica', adaptação do romance homônimo de Raduan Nassar, de 1975, que é ambientado em uma família de origem libanesa no interior do Brasil |
DA SUCURSAL DO RIO
Nos últimos anos, o cinema
nacional pouco tem feito em
matéria de arte. Há filmes com
carpintaria dramática decalcada
da televisão e de Hollywood. Há
outros de produção correta. Ou
com reconstituição de época razoável. São festejados por conseguirem chegar ao fim sem chatear
muito. Predomina a pasmaceira.
"Lavoura Arcaica" prova o
quanto esse marasmo tem de
conformismo. É um filme ambicioso, que demanda a atenção do
espectador. Tem quase três horas,
cenas lentas e longas, a ação se desenrola em planos temporais simultâneos, um jorro de prosa literária contrasta com silêncios pesados e composições em que o
preto é a cor dominante.
Mais: começa com uma comprida cena de masturbação, desenvolve-se num passado impreciso, trata de uma cultura minoritária (a dos imigrantes libaneses),
mal sai do ambiente de uma fazenda e tem a desfaçatez de enfrentar temas universais como
amor, trabalho, tempo.
"Lavoura Arcaica" é uma adaptação fiel do romance homônimo
de Raduan Nassar, de 1975. Muito
da sua expressividade tem origem
no livro, que nas últimas décadas
recebeu da crítica a pátina que
consagra os clássicos. Mas o filme
tem existência artística própria.
Ele percorre o romance e encontra sua própria poética.
O personagem central é André
(Selton Mello), o quinto dos sete
filhos de uma família patriarcal.
Como o filho pródigo da parábola
evangélica, ele sai e volta para casa, onde é recebido com uma festa. É uma ovelha desgarrada e tenebrosa. André não abandona o
lar em busca dos prazeres do
mundo. Foge porque não pode
conviver com a ordem do Pai
(Raul Cortez), que a condensa em
longos sermões à mesa.
A lei do Pai é aquela que, segundo Freud, funda a civilização, a
proibição do incesto. Ao contrário de Édipo, que desconhece sua
origem, e portanto não sabe que
mata o pai e casa com a mãe, André tem consciência da interdição, do tabu. Ele faz amor com
Ana (Simone Spoladore) sabendo
que ela é sua irmã.
O diretor Luiz Fernando Carvalho capta o corpo de André em
primeiro plano, imerso em sombras. É do corpo, da pulsão erótica
primeva, da natureza irracional,
que brota a revolta anárquica. À
realidade do corpo do filho o diretor contrapõe o discurso do Pai.
Os sermões do Pai tresandam a
racionalidade e sabedoria. Instigam a família ao trabalho, à paciência, à submissão aos ciclos de
um tempo eternamente circular,
sem saída. É uma prosa compacta, na qual é difícil deslindar o que
é imposição do que é argumento.
No universo mítico de "Lavoura
Arcaica" cabe às mulheres um papel ambíguo. A Mãe (Juliana Carneiro da Cunha) é fonte de amor e
ternura. Mas o afeto é percebido
pelo filho como sufocação, apêndice da repressão paterna. Ana é
mostrada descobrindo a sexualidade. Para André, porém, ela não
tem vida própria. É um objeto.
Nessa visão, as mulheres ficam
com as sequências mais constrangedoras de "Lavoura Arcaica".
Quando a mãe dá adeus ao filho
na janela, e Ana é comparada, numa metáfora primária, à pomba
que André captura numa armadilha, o filme resvala para o melodrama naturalista.
O embate entre a civilização e
seu descontente é travado pelos
machos, pai e filho, numa conversa à mesa. Por meio da palavra, o
forte subjuga o destrambelhado.
A sequência, para a qual o filme
converge, é de grande impacto.
Graças a Raul Cortez. A sua atuação em "Lavoura Arcaica", o melhor de sua carreira cinematográfica, comporta várias demãos de
significado.
Na cena do embate final, o ator
estampa no rosto a expressão do
depositário de tradições imemoriais, o susto do pai com o filho rebelado, a tentativa de entendimento e a reiteração da lei. Até
quando erra, Raul Cortez acerta.
Ele quase troca "milênios" por
"milhares" e retoma a fala com
garra redobrada, transmitindo o
erro para o personagem.
Selton Mello não atinge a contundência econômica nem a profundidade exibidas por Raul Cortez. Tem somente um momento
de transcendência, quando, derrotado pelo Pai, encarna a volúpia
da capitulação.
Apesar da vitória obtida pelo
Pai, a ordem não triunfa. Ela explode na lasciva dança de Ana. A
tragédia irrompe, e o clã se desagrega para que impere a Lei. A sequência, no entanto, é demasiado
rápida, atenuando o desejado
efeito catártico.
A poética do filme está menos
no enredo e mais nas cores, na
oposição entre espaços fechados e
abertos, entre sombra e luz, nos
enquadramentos preciosos e nas
frestas abertas pela trilha-sonora
de Marco Antônio Guimarães.
A fotografia de Walter Carvalho
se apoia em composições de Caravaggio e Rembrandt. Obtém
uma textura de emotividade agônica. Essas imagens, combinadas
com a música, sobretudo na primeira meia hora de filme, são responsáveis por uma beleza abstrata ímpar. Mas muitas vezes a solenidade das cenas naturalistas empana as abstratas. A justaposição
entre umas e outras dá origem a
um filme que, no todo, tem algo
de cerebrino.
Luiz Fernando Carvalho fez um
filme que enche os olhos e se insurge contra o conformismo. É
um diretor com algo a dizer e coragem de arriscar. O seu "Lavoura
Arcaica" é obra de arte.
(MARIO SERGIO CONTI)
Lavoura Arcaica
Direção: Luiz Fernando Carvalho
Produção: Brasil, 2001
Com: Selton Mello, Raul Cortez, Simone
Spoladore
Quando: a partir de hoje no Espaço
Unibanco e no Unibanco Arteplex
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