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LIVROS/LANÇAMENTOS
"O OTELO..."
Livro clássico de 1960 sobre "Dom Casmurro" chega agora ao Brasil
Capitu ganha "advogada de defesa" californiana
CASSIANO ELEK MACHADO
DA REPORTAGEM LOCAL
Foi só Machado de Assis publicar seu "Dom Casmurro", em
1899, que a personagem Capitu
passou a viver uma das grandes
perseguições literárias das que se
tem notícia no Brasil. Traidora,
dissimulada, rameira. Enganou o
marido, Bentinho, justo com o
amigo dele, Escobar.
O "joga a pedra" na Capitu continuou por longas seis décadas.
Até que a morena "dos olhos de
ressaca" encontrou, por fim, "advogada de defesa".
Com o livro "The Brazilian
Othelo of Machado de Assis", publicado nos EUA em 1960, a californiana Helen Caldwell fez um
importante "espera aí" nessa história: como seria possível cravar
que houve adultério se apenas
uma das partes, o casmurro Bentinho, relatava o caso? "Praticamente três gerações -pelo menos de críticos- julgaram Capitu
culpada. Permitam-nos reabrir o
caso", escreve a ensaísta.
O trabalho de Caldwell deflagrou o grande debate da literatura
brasileira, virou ponto de referência incontornável dos estudos
machadianos, mas permanecia
inédito no Brasil. Depois de quatro décadas, "O Otelo Brasileiro
de Machado de Assis" ganha sua
primeira edição no país.
Como o nome aponta, o trabalho de Caldwell (1904-87) não fica
restrito às especulações sobre as
alcovas de Bentinho e Capitu.
Otelo é o personagem de Shakespeare, e é a influência do bardo no
bruxo do Cosme Velho um dos
pontos de partida da ensaísta.
Só "Otelo", analisa Caldwell, teria aparecido no argumento de 28
narrativas, peças e artigos de Machado. E a estrutura clássica do
triângulo de enciumados Iago,
Desdêmona e Otelo daria a moldura de "Ressurreição", primeiro
romance do carioca, feito 28 anos
antes de "Dom Casmurro".
As relações feitas pela estudiosa
entre Shakespeare e Machado
acabam por não ser o foco central
do estudo, mas não são gratuitas.
Evocando a relação com o gigante
inglês, Caldwell parece querer
mostrar ao público americano,
que praticamente ignorava Machado, o gigantismo do autor.
"Os brasileiros possuem uma
jóia que deve ser motivo de inveja
para todo o mundo, um verdadeiro Kohinoor [diamante indiano
famoso por seu tamanho] entre
escritores de ficção: Machado de
Assis", marca ela no início do livro, antes de classificar "Dom
Casmurro" como "talvez o maior
de todos os romances do continente americano".
Caldwell, diga-se, conhecia cada
curva da sinuosa narrativa machadiana. Após uma juventude
na qual trabalhou nos estúdios de
cinema RKO e aprendeu dança japonesa com o célebre coreógrafo
Michio Ito (em cuja companhia
chegou a se apresentar), mergulhou com vigor em duas empreitadas intelectuais: estudou grego e
latim, tema sobre o qual lecionou
por 28 anos na Universidade da
Califórnia, e Machado de Assis.
Do "bruxo", ela pioneiramente
traduziu, comentou e apresentou
nos EUA quatro romances, aí incluída a história de Capitu e Bentinho. Sobre Machado publicou
ainda inúmeros ensaios em revistas acadêmicas e também o livro
"O Mestre Brasileiro e Seus Romances", trajetória que lhe rendeu a Ordem do Cruzeiro do Sul,
em 1959. Mas seu romance com o
escritor carioca nunca foi tão forte
quanto em "O Otelo Brasileiro".
"Foi o primeiro livro todo dedicado a "Dom Casmurro" e sobretudo um livro de ruptura, que
obrigou a rever a pobre e tranquila paz com que o romance, malgrado uma ou outra nota dissonante, ia sendo lido desde 1900",
afirma à Folha o crítico português
Abel Barros Baptista. "Espantoso" foi o termo escolhido pelo
professor da Universidade Nova
de Lisboa para o fato de o ensaio
nunca ter sido publicado aqui.
"Caldwell apresenta um "Dom
Casmurro", não apenas diverso,
senão que oposto ao que se supunha: e isso basta para fazer de "O
Otelo Brasileiro" um grande livro
de crítica literária e uma peça
maior da fortuna crítica machadiana", reforça Baptista.
Para o crítico, não é a possibilidade de inocência de Capitu
("sem dúvida decisiva para a leitura da obra-prima de Machado") a grande contribuição do ensaio de Caldwell. "Seu legado foi a
necessidade de ler o livro contra o
autor ficcional, Bento Santiago,
descolando-o, separando-o, discernindo-o do próprio Machado
e justamente em nome do mesmo
Machado." O autor de obras machadianas como "Autobibliografias" afirma que essa possibilidade, "que apenas os herdeiros de
Caldwell nos permitem ler no seu
livro, revolucionou a leitura de toda a obra machadiana e a levou a
um nível de complexidade que
nunca atingira antes".
Ouçamos um dos "herdeiros de
Caldwell", o crítico inglês John
Gledson, figura de proa nos estudos machadianos.
"É enorme a importância de
Caldwell", afirma Gledson em depoimento por e-mail. Tradutor de
"Dom Casmurro", ele salienta o
pioneirismo da percepção de que
"Capitu não é necessariamente
culpada de adultério" (vale lembrar que Capitu foi "absolvida"
do adultério em "julgamento"
promovido pela Folha com críticos e advogados em 99, para comemorar cem anos da obra).
"Pode-se dizer que ela exagera,
ao acenar que é possível "provar" a
inocência de Capitu. Pode-se dizer que os argumentos dela são às
vezes estranhos, usando os nomes
das personagens, por exemplo, ou
enredos de outras obras de Machado, para "Dom Casmurro",
sem dar a devida importância aos
contextos diferentes. Mas até em
seus exageros ela inspirou críticos
posteriores a construir argumentos melhores", conclui o professor
da Universidade de Liverpool.
Alfredo Bosi, um dos grandes
machadófilos nacionais, ao lado
de autores como Roberto
Schwarz e Silviano Santiago,
aponta uma direção oposta. O crítico faz elogios sobretudo ao fato
de Caldwell ter chamado a atenção da crítica americana para a
obra de Machado, mas defende
que o ensaio "não avança de modo significativo para a compreensão do romance".
"O livro acaba desviando o leitor do núcleo dramático do romance, que é a transformação de
Bentinho em Dom Casmurro",
afirma Bosi à Folha. Ainda assim,
mesmo crítico do trabalho de
Caldwell, comemora sua publicação, tardia, no Brasil. "De todo
modo, a tradução da obra é uma
iniciativa meritória", conclui.
O OTELO BRASILEIRO DE MACHADO
DE ASSIS. De: Helen Caldwell. Tradutor:
Fábio Fonseca de Mello. Editora: Ateliê.
Quanto: R$ 25 (224 págs.).
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