São Paulo, sábado, 09 de novembro de 2002

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LIVROS/LANÇAMENTOS

"O OTELO..."

Livro clássico de 1960 sobre "Dom Casmurro" chega agora ao Brasil
Capitu ganha "advogada de defesa" californiana

CASSIANO ELEK MACHADO
DA REPORTAGEM LOCAL

Foi só Machado de Assis publicar seu "Dom Casmurro", em 1899, que a personagem Capitu passou a viver uma das grandes perseguições literárias das que se tem notícia no Brasil. Traidora, dissimulada, rameira. Enganou o marido, Bentinho, justo com o amigo dele, Escobar.
O "joga a pedra" na Capitu continuou por longas seis décadas. Até que a morena "dos olhos de ressaca" encontrou, por fim, "advogada de defesa".
Com o livro "The Brazilian Othelo of Machado de Assis", publicado nos EUA em 1960, a californiana Helen Caldwell fez um importante "espera aí" nessa história: como seria possível cravar que houve adultério se apenas uma das partes, o casmurro Bentinho, relatava o caso? "Praticamente três gerações -pelo menos de críticos- julgaram Capitu culpada. Permitam-nos reabrir o caso", escreve a ensaísta.
O trabalho de Caldwell deflagrou o grande debate da literatura brasileira, virou ponto de referência incontornável dos estudos machadianos, mas permanecia inédito no Brasil. Depois de quatro décadas, "O Otelo Brasileiro de Machado de Assis" ganha sua primeira edição no país.
Como o nome aponta, o trabalho de Caldwell (1904-87) não fica restrito às especulações sobre as alcovas de Bentinho e Capitu. Otelo é o personagem de Shakespeare, e é a influência do bardo no bruxo do Cosme Velho um dos pontos de partida da ensaísta.
Só "Otelo", analisa Caldwell, teria aparecido no argumento de 28 narrativas, peças e artigos de Machado. E a estrutura clássica do triângulo de enciumados Iago, Desdêmona e Otelo daria a moldura de "Ressurreição", primeiro romance do carioca, feito 28 anos antes de "Dom Casmurro".
As relações feitas pela estudiosa entre Shakespeare e Machado acabam por não ser o foco central do estudo, mas não são gratuitas. Evocando a relação com o gigante inglês, Caldwell parece querer mostrar ao público americano, que praticamente ignorava Machado, o gigantismo do autor.
"Os brasileiros possuem uma jóia que deve ser motivo de inveja para todo o mundo, um verdadeiro Kohinoor [diamante indiano famoso por seu tamanho] entre escritores de ficção: Machado de Assis", marca ela no início do livro, antes de classificar "Dom Casmurro" como "talvez o maior de todos os romances do continente americano".
Caldwell, diga-se, conhecia cada curva da sinuosa narrativa machadiana. Após uma juventude na qual trabalhou nos estúdios de cinema RKO e aprendeu dança japonesa com o célebre coreógrafo Michio Ito (em cuja companhia chegou a se apresentar), mergulhou com vigor em duas empreitadas intelectuais: estudou grego e latim, tema sobre o qual lecionou por 28 anos na Universidade da Califórnia, e Machado de Assis.
Do "bruxo", ela pioneiramente traduziu, comentou e apresentou nos EUA quatro romances, aí incluída a história de Capitu e Bentinho. Sobre Machado publicou ainda inúmeros ensaios em revistas acadêmicas e também o livro "O Mestre Brasileiro e Seus Romances", trajetória que lhe rendeu a Ordem do Cruzeiro do Sul, em 1959. Mas seu romance com o escritor carioca nunca foi tão forte quanto em "O Otelo Brasileiro".
"Foi o primeiro livro todo dedicado a "Dom Casmurro" e sobretudo um livro de ruptura, que obrigou a rever a pobre e tranquila paz com que o romance, malgrado uma ou outra nota dissonante, ia sendo lido desde 1900", afirma à Folha o crítico português Abel Barros Baptista. "Espantoso" foi o termo escolhido pelo professor da Universidade Nova de Lisboa para o fato de o ensaio nunca ter sido publicado aqui.
"Caldwell apresenta um "Dom Casmurro", não apenas diverso, senão que oposto ao que se supunha: e isso basta para fazer de "O Otelo Brasileiro" um grande livro de crítica literária e uma peça maior da fortuna crítica machadiana", reforça Baptista.
Para o crítico, não é a possibilidade de inocência de Capitu ("sem dúvida decisiva para a leitura da obra-prima de Machado") a grande contribuição do ensaio de Caldwell. "Seu legado foi a necessidade de ler o livro contra o autor ficcional, Bento Santiago, descolando-o, separando-o, discernindo-o do próprio Machado e justamente em nome do mesmo Machado." O autor de obras machadianas como "Autobibliografias" afirma que essa possibilidade, "que apenas os herdeiros de Caldwell nos permitem ler no seu livro, revolucionou a leitura de toda a obra machadiana e a levou a um nível de complexidade que nunca atingira antes".
Ouçamos um dos "herdeiros de Caldwell", o crítico inglês John Gledson, figura de proa nos estudos machadianos.
"É enorme a importância de Caldwell", afirma Gledson em depoimento por e-mail. Tradutor de "Dom Casmurro", ele salienta o pioneirismo da percepção de que "Capitu não é necessariamente culpada de adultério" (vale lembrar que Capitu foi "absolvida" do adultério em "julgamento" promovido pela Folha com críticos e advogados em 99, para comemorar cem anos da obra).
"Pode-se dizer que ela exagera, ao acenar que é possível "provar" a inocência de Capitu. Pode-se dizer que os argumentos dela são às vezes estranhos, usando os nomes das personagens, por exemplo, ou enredos de outras obras de Machado, para "Dom Casmurro", sem dar a devida importância aos contextos diferentes. Mas até em seus exageros ela inspirou críticos posteriores a construir argumentos melhores", conclui o professor da Universidade de Liverpool.
Alfredo Bosi, um dos grandes machadófilos nacionais, ao lado de autores como Roberto Schwarz e Silviano Santiago, aponta uma direção oposta. O crítico faz elogios sobretudo ao fato de Caldwell ter chamado a atenção da crítica americana para a obra de Machado, mas defende que o ensaio "não avança de modo significativo para a compreensão do romance".
"O livro acaba desviando o leitor do núcleo dramático do romance, que é a transformação de Bentinho em Dom Casmurro", afirma Bosi à Folha. Ainda assim, mesmo crítico do trabalho de Caldwell, comemora sua publicação, tardia, no Brasil. "De todo modo, a tradução da obra é uma iniciativa meritória", conclui.


O OTELO BRASILEIRO DE MACHADO DE ASSIS. De: Helen Caldwell. Tradutor: Fábio Fonseca de Mello. Editora: Ateliê. Quanto: R$ 25 (224 págs.).




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