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MARCELO COELHO
A irresistível simpatia do poder
A foto já diz muito por si
mesma, mas não resisto a
acrescentar alguns comentários.
Saiu segunda-feira, na primeira
página da °Folha. Há um carro
incendiado, quase roxo, do lado
esquerdo: bateu em cheio na vidraça da lanchonete. Pelo chão, o
que se vê são os destroços, também roxos, de coisas que parecem
ter caído do teto; vidros e ferragens se amontoam e se contorcem, numa cena típica de atentado.
Só que, do lado direito da foto,
tudo ainda parece intacto: junto
a um balcão de madeira clara,
bem limpinho, alguém continua
sentado, de pernas cruzadas, calçando sapatos enormes e vermelhos, com um sorriso fixo no rosto.
Trata-se de Ronald McDonald, o
boneco, que continua a dar as
boas-vindas aos visitantes da lanchonete destruída.
A imagem ilustra os tumultos
na periferia de Paris, onde jovens
desempregados vão empreendendo, há vários dias, uma espécie de
"maio de 68 dos pobres". Trata-se
de um movimento sem charme
nenhum, sem palavras de ordem
libertárias, sem porta-vozes intelectuais, sem filosofia, sem humor: pelo que se vê até agora, é
quebra-quebra mesmo, com uma
cobertura de fundamentalismo
muçulmano para complicar as
coisas.
À primeira vista, estamos diante de um exemplo clássico de ironia fotográfica: Ronald McDonald parece tolo e deslocado,
diante da catástrofe à sua volta.
Sua risada perde o sentido, sua
atitude de bem-estar e hospitalidade se revela ingênua, artificial e
ridícula. Incapaz de adaptar-se à
nova circunstância, o boneco poderia servir como ilustração das
teses de Bergson sobre o riso. Para
o filósofo, tudo o que desperta hilaridade (o tropeço de alguém na
rua, um sotaque extremado, a
burrice de um personagem de
anedota) nasce do contraste súbito entre a rigidez e a flexibilidade,
entre o mecânico e o orgânico.
O mundo se agita, as paixões
nascem e morrem, a conjuntura
política é tempestuosa ao extremo, a vida dos muçulmanos numa periferia européia não se
equivale a uma infância de consumo na Costa Oeste dos Estados
Unidos, um hambúrguer com
milkshake não resolve os rancores
de uma gangue de desempregados, mas Ronald McDonald tudo
ignora: insiste na sua mensagem
infantil e descabida.
Isso, numa primeira interpretação da foto. Mas, sem dúvida, o
significado inverso é o mais pertinente. Ronald McDonald não é o
pólo frágil, inocente e ridículo da
situação: é ele quem ri do atentado, quem resiste, incólume, às investidas do carro incendiário e
despreza os que tentam destruí-lo.
Sem entrar no mérito, tantas
vezes discutido, da lanchonete, fiquei pensando: na figura de Ronald McDonald está o retrato do
poder. Hesito em usar letra
maiúscula, como gostam de fazer
os franceses, aliás, mas lá vai: é o
retrato do Poder.
Em outros tempos, o Poder tinha um ar sinistro, carregado,
cheio de solenidade e pompa.
Basta pensar naqueles quadros
de papas e cardeais renascentistas
(o Leão 10 de Rafael, o Inocêncio
10 de Velázquez) para ver que
aquela gente não fazia questão de
ser simpática. Passou-se à grandeza, ao luxo, à irradiação formidável dos monarcas do século 18
e, depois, ao rigor depressivo e fúnebre dos estadistas vitorianos,
dos homenzinhos de cartola na
Terceira República francesa.
Mais tarde, os ditadores se cobriram de uniformes e honrarias militares: cumpria que se mostrassem de fato ameaçadores, implacáveis, sanguinários.
Hoje, o poder constituído é simpático, sorridente, humano e ostenta o maior jeito de bobão. Na
visita de George W. Bush ao Brasil, não houve quem não tenha se
encantado com a simplicidade espontânea e bem-humorada do
presidente americano; mas seus
antecessores eram assim também.
Lula, por sua vez, ficou felicíssimo
com o encontro diplomático, e, no
fim das contas, todos os presidentes do mundo -como Ronald
McDonald- não param nunca
de rir.
Sabem que, a cada encontro de
lideranças mundiais, os protestos
de sempre serão organizados pelos grupos que sempre protestam;
nada disso os abala. A ordem é
mostrar-se invariavelmente feliz.
Movido a publicidade, guloseimas e brinquedos eletrônicos, o
sistema dominante funciona como um parque de diversões, que
iguala na mesma mentalidade o
cidadão comum e as pessoas mais
poderosas do planeta. A única
coisa que não se admite é o descontentamento.
E não se trata propriamente de
reprimir os descontentes, os revoltosos, os excluídos: antes de mais
nada, trata-se de ignorá-los. Eles
são invisíveis, inexistentes. E nisso
talvez se explique a violência sem
palavras, o vandalismo puro e
simples de muitos movimentos de
protesto: mais do que reivindicar
alguma mudança (o que provavelmente todos sabem ser inútil),
o objetivo é apenas ser reconhecido: a periferia quer mostrar que
existe -e, para afirmar-se, recorre à destruição.
Ronald McDonald recebe os revoltosos de braços abertos, sabendo que amanhã tudo volta ao
normal e que eles, os seus inimigos... ora, afinal, para onde foram? Não estão mais na lanchonete, desapareceram; nem há
muitas garantias de que sejam
reais. Muito provavelmente não
passam de simulacros, pensa Ronald; "Não são pessoas de verdade como eu". Os revoltosos de Paris vão sendo reconduzidos, assim, ao mesmo limbo ontológico
em que se localizam, por exemplo,
as provas do "mensalão" e certas
contas na Suíça: ah, elas não existem. De concreto mesmo, só dois
hambúrgueres, queijo derretido,
alface, cebola e picles num pão
com gergelim.
@ - coelhofsp@uol.com.br
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