São Paulo, quarta-feira, 09 de novembro de 2005

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MARCELO COELHO

A irresistível simpatia do poder

A foto já diz muito por si mesma, mas não resisto a acrescentar alguns comentários. Saiu segunda-feira, na primeira página da °Folha. Há um carro incendiado, quase roxo, do lado esquerdo: bateu em cheio na vidraça da lanchonete. Pelo chão, o que se vê são os destroços, também roxos, de coisas que parecem ter caído do teto; vidros e ferragens se amontoam e se contorcem, numa cena típica de atentado.
Só que, do lado direito da foto, tudo ainda parece intacto: junto a um balcão de madeira clara, bem limpinho, alguém continua sentado, de pernas cruzadas, calçando sapatos enormes e vermelhos, com um sorriso fixo no rosto. Trata-se de Ronald McDonald, o boneco, que continua a dar as boas-vindas aos visitantes da lanchonete destruída.
A imagem ilustra os tumultos na periferia de Paris, onde jovens desempregados vão empreendendo, há vários dias, uma espécie de "maio de 68 dos pobres". Trata-se de um movimento sem charme nenhum, sem palavras de ordem libertárias, sem porta-vozes intelectuais, sem filosofia, sem humor: pelo que se vê até agora, é quebra-quebra mesmo, com uma cobertura de fundamentalismo muçulmano para complicar as coisas.
À primeira vista, estamos diante de um exemplo clássico de ironia fotográfica: Ronald McDonald parece tolo e deslocado, diante da catástrofe à sua volta. Sua risada perde o sentido, sua atitude de bem-estar e hospitalidade se revela ingênua, artificial e ridícula. Incapaz de adaptar-se à nova circunstância, o boneco poderia servir como ilustração das teses de Bergson sobre o riso. Para o filósofo, tudo o que desperta hilaridade (o tropeço de alguém na rua, um sotaque extremado, a burrice de um personagem de anedota) nasce do contraste súbito entre a rigidez e a flexibilidade, entre o mecânico e o orgânico.
O mundo se agita, as paixões nascem e morrem, a conjuntura política é tempestuosa ao extremo, a vida dos muçulmanos numa periferia européia não se equivale a uma infância de consumo na Costa Oeste dos Estados Unidos, um hambúrguer com milkshake não resolve os rancores de uma gangue de desempregados, mas Ronald McDonald tudo ignora: insiste na sua mensagem infantil e descabida.
Isso, numa primeira interpretação da foto. Mas, sem dúvida, o significado inverso é o mais pertinente. Ronald McDonald não é o pólo frágil, inocente e ridículo da situação: é ele quem ri do atentado, quem resiste, incólume, às investidas do carro incendiário e despreza os que tentam destruí-lo.
Sem entrar no mérito, tantas vezes discutido, da lanchonete, fiquei pensando: na figura de Ronald McDonald está o retrato do poder. Hesito em usar letra maiúscula, como gostam de fazer os franceses, aliás, mas lá vai: é o retrato do Poder.
Em outros tempos, o Poder tinha um ar sinistro, carregado, cheio de solenidade e pompa. Basta pensar naqueles quadros de papas e cardeais renascentistas (o Leão 10 de Rafael, o Inocêncio 10 de Velázquez) para ver que aquela gente não fazia questão de ser simpática. Passou-se à grandeza, ao luxo, à irradiação formidável dos monarcas do século 18 e, depois, ao rigor depressivo e fúnebre dos estadistas vitorianos, dos homenzinhos de cartola na Terceira República francesa. Mais tarde, os ditadores se cobriram de uniformes e honrarias militares: cumpria que se mostrassem de fato ameaçadores, implacáveis, sanguinários.
Hoje, o poder constituído é simpático, sorridente, humano e ostenta o maior jeito de bobão. Na visita de George W. Bush ao Brasil, não houve quem não tenha se encantado com a simplicidade espontânea e bem-humorada do presidente americano; mas seus antecessores eram assim também. Lula, por sua vez, ficou felicíssimo com o encontro diplomático, e, no fim das contas, todos os presidentes do mundo -como Ronald McDonald- não param nunca de rir.
Sabem que, a cada encontro de lideranças mundiais, os protestos de sempre serão organizados pelos grupos que sempre protestam; nada disso os abala. A ordem é mostrar-se invariavelmente feliz. Movido a publicidade, guloseimas e brinquedos eletrônicos, o sistema dominante funciona como um parque de diversões, que iguala na mesma mentalidade o cidadão comum e as pessoas mais poderosas do planeta. A única coisa que não se admite é o descontentamento.
E não se trata propriamente de reprimir os descontentes, os revoltosos, os excluídos: antes de mais nada, trata-se de ignorá-los. Eles são invisíveis, inexistentes. E nisso talvez se explique a violência sem palavras, o vandalismo puro e simples de muitos movimentos de protesto: mais do que reivindicar alguma mudança (o que provavelmente todos sabem ser inútil), o objetivo é apenas ser reconhecido: a periferia quer mostrar que existe -e, para afirmar-se, recorre à destruição.
Ronald McDonald recebe os revoltosos de braços abertos, sabendo que amanhã tudo volta ao normal e que eles, os seus inimigos... ora, afinal, para onde foram? Não estão mais na lanchonete, desapareceram; nem há muitas garantias de que sejam reais. Muito provavelmente não passam de simulacros, pensa Ronald; "Não são pessoas de verdade como eu". Os revoltosos de Paris vão sendo reconduzidos, assim, ao mesmo limbo ontológico em que se localizam, por exemplo, as provas do "mensalão" e certas contas na Suíça: ah, elas não existem. De concreto mesmo, só dois hambúrgueres, queijo derretido, alface, cebola e picles num pão com gergelim.


@ - coelhofsp@uol.com.br

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