São Paulo, segunda, 9 de novembro de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Para ver alguns metros adiante de nossa crise

FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha

² Durante o feriado pensei em como me comportar na crise que se anuncia para o país e, ao que parece, é uma crise sistêmica, envolvendo várias economias nacionais. Mas era feriado, havia muito tempo e decidi pensar um pouco além da crise, em como seremos depois dela.
Na verdade, fui estimulado por um artigo na "Arena" que me desenhava, pelo menos, um rascunho do que se passa num país quando se encerra a fase triunfante do liberalismo. Nestas circunstâncias, não se pode prosseguir com a mesma atitude, mas também não se pode voltar atrás, aos tempos do Estado propulsor do progresso econômico.
O modelo que me fez pensar no pós-crise é a Inglaterra. Basta anunciar isso que todos dizem: mas a Inglaterra não é o Brasil. Também acho que não é e, se estivesse equivocado sobre isto, estaria sendo atropelado a todo instante pela realidade.
O artigo que me inspirou nem sequer trata da efervescência intelectual que levou à formulação da terceira via. É um artigo menos pretensioso, escrito depois de uma visita a um bar da moda, o Maverick. "Maverick" em inglês quer dizer aquele que não tem mestre, que pensa por si próprio, que não é ortodoxo.
O bar é frequentado por profissionais liberais que discutem tudo, são curiosos e parecem estar num permanente seminário informal. O autor do artigo procura examinar o que aconteceu com eles após a crise do modelo liberal inglês. Muitos deixaram seus trabalhos regulares e partiram para uma carreira solo. E quase todos se deram bem.
Pressionados pela crise, reduziram custos, ampliaram sua criatividade e foram beneficiados também pela extraordinária demanda por artigos simbólicos: imagens, propaganda, filmes. Era como se a nova fase do capitalismo, na qual o conhecimento não é apenas um fator de produção, mas o mais importante deles, desabrochasse definitivamente.
Estamos muito longe disto, diriam alguns. Como pensar essas barbaridades no auge da crise, perguntariam outros. No entanto, ressalvadas as profundas diferenças entre Brasil e Inglaterra, gostaria de acentuar alguns pontos.
A quebra do monopólio estatal nas teles vai abrir caminho para um processo mais rápido e moderno de comunicação. Ontem mesmo, confirmei meu pedido de um telefone e um pager internacionais, que já estão sendo vendidos no Brasil.
Esta infra-estrutura renovada vai garantir, pelo menos, os pressupostos para que estas mercadorias não-materiais transitem com facilidade. Sei que a cultura brasileira está enforcada, que a desaparição de teles estatais cortou parte do subsídio aos espetáculos.
Por outro lado, é necessário lembrar que existe uma disponibilidade internacional para o cinema, que TVs a cabo funcionam 24 horas por dia devorando novos produtos, que para certos produtos culturais como a música o conceito de mercado nacional é muito limitado.
Você pode estar pensando que o feriado me enlouqueceu. No entanto, vejo na cultura e no meio ambiente (este descoberto pelas empresas como uma forma de aprofundar o capitalismo) dois ramos de futuro, embora no auge da crise sejam atropelados pelos realistas de plantão.
Talvez o país precisasse discutir um pouco mais o que virá depois da crise. Pode nos ajudar a orientar o barco na própria crise. A sensação que tenho é a de que as pessoas querem apenas sair do sufoco para continuar a vidinha de sempre. Mas a vidinha de sempre acabou, ela acaba com frequência sem que a gente se dê conta. Será preciso uma grande mudança, quase que uma mudança de paradigma.
Na área mais dinâmica, que chamo de cultural porque minha visão de cultura é talvez menos rigorosa, a procura de lazer a informação vai consolidar as pequenas empresas quase que individuais, com alta produtividade e criatividade. Seus donos, ex-profissionais de grandes conglomerados, não vão querer nunca voltar atrás, ao tempo em que tinham um salário, férias etc., mas sua possibilidade de voar estava limitada pela própria estrutura.
Como é gente que gosta muito de trabalhar, pode surgir um certo vazio na sua vida. Não têm mais horários, na verdade todo o tempo estão trabalhando, pois a natureza de seu trabalho permite que o façam mesmo quando estão se divertindo.
O artigo sobre o bar inglês já registra esse mal-estar. Os "mavericks", pós-Estado, pós- patrão das 9h às 17h, procuram, ainda meio desorganizadamente, novos temas para suas vidas, uma vez que sua vitória profissional não os satisfaz inteiramente.
Quero dizer em minha defesa que não descuidei do dever de casa, buscando alternativas para os grandes cortes que o governo quer fazer nos gastos públicos. No entanto, já que era feriado, tentei ver alguns metros adiante de nossa crise e, quem sabe, antecipar possibilidades.
O grande passo que o Brasil deu para sair da fase industrial e entrar na fase digital, na qual o conhecimento produz conhecimento, foi a quebra do monopólio. Lamento que muita gente tenha visto nisto apenas a possibilidade de comprar um telefone que dê linha. O buraco é mais embaixo.
Não seria interessante tratar também disto e averiguar se é loucura ou não preparar o país para o grande salto para uma fase digital, em que a informática seja o fator decisivo no aumento da produtividade de quase todos os setores e cultura e meio ambiente, ao invés de mendigos, apareçam como estímulos determinantes da modernização capitalista do país?
Nada como especular em feriados. A crise vai ser dura. Estou me preparando especificamente para ela. Não custa nada tentar ver um pouco além do nevoeiro. Mesmo porque não se corre o risco de alienação.
Os "mavericks" ingleses vitoriosos no combate aos perigos do pós- liberalismo acabaram formulando a básica questão sobre o valor de um mundo em que tantos foram excluídos.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.