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Para ver alguns metros adiante de nossa crise
FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha
²
Durante o feriado pensei em
como me comportar na crise
que se anuncia para o país e,
ao que parece, é uma crise sistêmica, envolvendo várias economias nacionais. Mas era feriado, havia muito tempo e decidi pensar um pouco além da
crise, em como seremos depois
dela.
Na verdade, fui estimulado
por um artigo na "Arena" que
me desenhava, pelo menos, um
rascunho do que se passa num
país quando se encerra a fase
triunfante do liberalismo. Nestas circunstâncias, não se pode
prosseguir com a mesma atitude, mas também não se pode
voltar atrás, aos tempos do Estado propulsor do progresso
econômico.
O modelo que me fez pensar
no pós-crise é a Inglaterra.
Basta anunciar isso que todos
dizem: mas a Inglaterra não é
o Brasil. Também acho que
não é e, se estivesse equivocado
sobre isto, estaria sendo atropelado a todo instante pela
realidade.
O artigo que me inspirou
nem sequer trata da efervescência intelectual que levou à
formulação da terceira via. É
um artigo menos pretensioso,
escrito depois de uma visita a
um bar da moda, o Maverick.
"Maverick" em inglês quer dizer aquele que não tem mestre,
que pensa por si próprio, que
não é ortodoxo.
O bar é frequentado por profissionais liberais que discutem
tudo, são curiosos e parecem
estar num permanente seminário informal. O autor do artigo procura examinar o que
aconteceu com eles após a crise
do modelo liberal inglês. Muitos deixaram seus trabalhos regulares e partiram para uma
carreira solo. E quase todos se
deram bem.
Pressionados pela crise, reduziram custos, ampliaram sua
criatividade e foram beneficiados também pela extraordinária demanda por artigos simbólicos: imagens, propaganda,
filmes. Era como se a nova fase
do capitalismo, na qual o conhecimento não é apenas um
fator de produção, mas o mais
importante deles, desabrochasse definitivamente.
Estamos muito longe disto,
diriam alguns. Como pensar
essas barbaridades no auge da
crise, perguntariam outros. No
entanto, ressalvadas as profundas diferenças entre Brasil
e Inglaterra, gostaria de acentuar alguns pontos.
A quebra do monopólio estatal nas teles vai abrir caminho
para um processo mais rápido
e moderno de comunicação.
Ontem mesmo, confirmei meu
pedido de um telefone e um pager internacionais, que já estão
sendo vendidos no Brasil.
Esta infra-estrutura renovada vai garantir, pelo menos, os
pressupostos para que estas
mercadorias não-materiais
transitem com facilidade. Sei
que a cultura brasileira está
enforcada, que a desaparição
de teles estatais cortou parte
do subsídio aos espetáculos.
Por outro lado, é necessário
lembrar que existe uma disponibilidade internacional para
o cinema, que TVs a cabo funcionam 24 horas por dia devorando novos produtos, que para certos produtos culturais como a música o conceito de
mercado nacional é muito limitado.
Você pode estar pensando
que o feriado me enlouqueceu.
No entanto, vejo na cultura e
no meio ambiente (este descoberto pelas empresas como
uma forma de aprofundar o
capitalismo) dois ramos de futuro, embora no auge da crise
sejam atropelados pelos realistas de plantão.
Talvez o país precisasse discutir um pouco mais o que virá
depois da crise. Pode nos ajudar a orientar o barco na própria crise. A sensação que tenho é a de que as pessoas querem apenas sair do sufoco para
continuar a vidinha de sempre.
Mas a vidinha de sempre acabou, ela acaba com frequência
sem que a gente se dê conta. Será preciso uma grande mudança, quase que uma mudança
de paradigma.
Na área mais dinâmica, que
chamo de cultural porque minha visão de cultura é talvez
menos rigorosa, a procura de
lazer a informação vai consolidar as pequenas empresas quase que individuais, com alta
produtividade e criatividade.
Seus donos, ex-profissionais de
grandes conglomerados, não
vão querer nunca voltar atrás,
ao tempo em que tinham um
salário, férias etc., mas sua
possibilidade de voar estava limitada pela própria estrutura.
Como é gente que gosta muito de trabalhar, pode surgir um
certo vazio na sua vida. Não
têm mais horários, na verdade
todo o tempo estão trabalhando, pois a natureza de seu trabalho permite que o façam
mesmo quando estão se divertindo.
O artigo sobre o bar inglês já
registra esse mal-estar. Os
"mavericks", pós-Estado, pós-
patrão das 9h às 17h, procuram, ainda meio desorganizadamente, novos temas para
suas vidas, uma vez que sua vitória profissional não os satisfaz inteiramente.
Quero dizer em minha defesa
que não descuidei do dever de
casa, buscando alternativas
para os grandes cortes que o
governo quer fazer nos gastos
públicos. No entanto, já que
era feriado, tentei ver alguns
metros adiante de nossa crise
e, quem sabe, antecipar possibilidades.
O grande passo que o Brasil
deu para sair da fase industrial
e entrar na fase digital, na qual
o conhecimento produz conhecimento, foi a quebra do monopólio. Lamento que muita
gente tenha visto nisto apenas
a possibilidade de comprar um
telefone que dê linha. O buraco
é mais embaixo.
Não seria interessante tratar
também disto e averiguar se é
loucura ou não preparar o país
para o grande salto para uma
fase digital, em que a informática seja o fator decisivo no aumento da produtividade de
quase todos os setores e cultura
e meio ambiente, ao invés de
mendigos, apareçam como estímulos determinantes da modernização capitalista do país?
Nada como especular em feriados. A crise vai ser dura. Estou me preparando especificamente para ela. Não custa nada tentar ver um pouco além
do nevoeiro. Mesmo porque
não se corre o risco de alienação.
Os "mavericks" ingleses vitoriosos no combate aos perigos
do pós- liberalismo acabaram
formulando a básica questão
sobre o valor de um mundo em
que tantos foram excluídos.
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