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MEMÓRIA
O espelho de Orides
ALCIDES VILLAÇA
especial para a Folha
Na aula, a colega à minha frente
-moça muito magra, muito míope, muito esquisita- não parava
de encher uma folha de caderno
com nervosas espirais e círculos
concêntricos.
Algum tempo depois fiquei sabendo que, além dessas figuras obsessivas, Orides (morta na segunda-feira passada, em Campos do
Jordão, de insuficiência cardiopulmonar) criava poemas dos mais
intensos e iluminados do nosso
tempo, nos quais se dava uma perfeita conjunção entre o que dizem
as palavras, controladas, e o saber
calar, no específico silêncio que
acusam.
Assim:
²
meio-dia cristal
ácido
²
meio-dia amor
sem sombra
²
Não são exercícios de claridade: já
são a consumação daquela lucidez
sensível que assusta, porque converte a ação do espírito na prova irrefutável e material das palavras.
E não se espere que Orides nos
fale do cotidiano, ou de sua biografia, ou das notícias correntes, ou
das carências específicas; poemas
sem queixa e sem esperança movem-se na direção profunda de si
mesmos, porque vivem da convicção de que, fora deles, não há ser
possível.
É nesse espaço de palavras e nesse tempo radical que respiram, plenamente articulados entre si, os
símbolos essenciais de Orides.
Por força do poético que há neles, tais símbolos se apresentam
como os mais efetivos acontecimentos.
Os títulos de seus livros são substantivos -"Transposição", "Helianto", "Alba", "Rosácea" e
"Teia"- que figuram sutilmente
um levíssimo movimento, por trás
das imagens aparentemente fixadas. É esse movimento que o leitor
deverá descobrir, se der aos poemas o tempo da atenção que leva à
permanência.
Sim, há também mitos, há personagens, há filósofos e poetas ouvidos e nomeados nessa poesia, que
desse modo levanta a cabeça e olha
em torno, sondando o repertório
da tradição cultural e da modernidade -para logo baixar os olhos
até a página e inscrever, como em
pedra, os nomes que clareiam o
enigma, conservando-o.
Sem outra resposta para a vida
que não fosse as palavras subitamente essenciais, Orides cristalizou-as, num espelho que nos apanha:
²
Iniciação
Se vens a uma terra estranha
curva-te
se este lugar é esquisito
curva-te
se o dia é todo estranheza
submete-se
- és infinitamente mais estranho
²
Alcides Villaça é professor de literatura brasileira da USP
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