São Paulo, segunda, 9 de novembro de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MEMÓRIA
O espelho de Orides

ALCIDES VILLAÇA
especial para a Folha

Na aula, a colega à minha frente -moça muito magra, muito míope, muito esquisita- não parava de encher uma folha de caderno com nervosas espirais e círculos concêntricos.
Algum tempo depois fiquei sabendo que, além dessas figuras obsessivas, Orides (morta na segunda-feira passada, em Campos do Jordão, de insuficiência cardiopulmonar) criava poemas dos mais intensos e iluminados do nosso tempo, nos quais se dava uma perfeita conjunção entre o que dizem as palavras, controladas, e o saber calar, no específico silêncio que acusam.
Assim:

² meio-dia cristal
ácido

² meio-dia amor
sem sombra

² Não são exercícios de claridade: já são a consumação daquela lucidez sensível que assusta, porque converte a ação do espírito na prova irrefutável e material das palavras.
E não se espere que Orides nos fale do cotidiano, ou de sua biografia, ou das notícias correntes, ou das carências específicas; poemas sem queixa e sem esperança movem-se na direção profunda de si mesmos, porque vivem da convicção de que, fora deles, não há ser possível.
É nesse espaço de palavras e nesse tempo radical que respiram, plenamente articulados entre si, os símbolos essenciais de Orides.
Por força do poético que há neles, tais símbolos se apresentam como os mais efetivos acontecimentos.
Os títulos de seus livros são substantivos -"Transposição", "Helianto", "Alba", "Rosácea" e "Teia"- que figuram sutilmente um levíssimo movimento, por trás das imagens aparentemente fixadas. É esse movimento que o leitor deverá descobrir, se der aos poemas o tempo da atenção que leva à permanência.
Sim, há também mitos, há personagens, há filósofos e poetas ouvidos e nomeados nessa poesia, que desse modo levanta a cabeça e olha em torno, sondando o repertório da tradição cultural e da modernidade -para logo baixar os olhos até a página e inscrever, como em pedra, os nomes que clareiam o enigma, conservando-o.
Sem outra resposta para a vida que não fosse as palavras subitamente essenciais, Orides cristalizou-as, num espelho que nos apanha:

² Iniciação
Se vens a uma terra estranha
curva-te
se este lugar é esquisito
curva-te
se o dia é todo estranheza
submete-se
- és infinitamente mais estranho
²


Alcides Villaça é professor de literatura brasileira da USP



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.