São Paulo, sábado, 09 de dezembro de 2000

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WALTER SALLES

Nós que nos amávamos tanto

De volta à tona -e à Ilustrada. Foram vários meses de imersão cinematográfica no oeste da Bahia, sem ler jornal ou ver TV. O retorno à irrealidade cotidiana, como dizia Mário Peixoto, não se fez sem surpresas.
A começar pelos jornais. Notícias internacionais: os Estados Unidos estão contando manualmente os votos que definirão o próximo presidente da República. Não pode ser. Releio a informação. Na terra da prepotência e de Bill Gates, é divertido demais. Melhor ainda: Cuba oferece enviar emissários para a Flórida, de forma a garantir a lisura das apurações. Imbatível.
Notícias locais. Um diário carioca informa que gangues de jovens armados de pedras e pedaços de pau estão descendo os morros, invadindo "os espaços nobres da cidade", quebrando automóveis etc. O fato é apresentado como um fenômeno recente, e logo vem a explicação: os "baderneiros" estariam sendo manipulados por traficantes. E a moral: as invasões se alastram cada vez mais pelo Rio de Janeiro, é preciso que as forças policiais reajam etc.
O que é apresentado como manipulação ou um fato novo não o é, efetivamente. Um rápido mergulho na história mostra que esse fenômeno se repete há séculos, em todas as sociedades em que os desníveis de renda são tão vertiginosos quanto no Brasil contemporâneo. Na Itália renascentista, o ataque das gangues de meninos pobres tinha até um nome: a sassata. Em épocas de fome e carestia, os jovens invadiam as ruas e iniciavam verdadeiras guerras de pedras, atingindo os soldados do Estado ou os detentores do poder.
Um livro intitulado "Comportamentos e Sociedade na Itália Renascentista" informa que "mesmo em épocas de relativa calma política, a ostentação excessiva dos membros mais abastados da burguesia, do clero ou da nobreza podia deflagrar a sassata". Os alvos mais procurados eram as carruagens, regularmente atingidas pelas gangues, o que acabava gerando inacreditáveis engarrafamentos na Roma do século 15.
Para combater a sassata, o poder local instituiu a Febem da época. Uma lei editada em 24 de novembro de 1487 previa que qualquer mamolo (menino) de mais de 8 anos "de má origem" e visto com pedras nas mãos acabaria na prisão. Posteriormente, a idade mínima para a punição baixou para 7 anos. Nada muito diferente daquilo que vivemos, 500 e poucos anos depois.
Mudando de assunto -ma non troppo. Nas bancas de jornais, percebe-se que o número de revistas que adulam as personalidades -conhecidas pejorativamente como "celebs" na terra da contagem manual do voto- dobrou em poucos meses.
Agora existem cinco ou seis publicações diferentes para as pessoas exporem suas vaidades e suas mesas de acrílico ao grande público. A indústria da fama é indubitavelmente um dos setores que mais cresceram no Brasil, junto com o mercado de carros blindados.
Entrando em áreas menos pantanosas. Nestes últimos quatro meses, o cenário do cinema brasileiro também mudou. "O Auto da Compadecida" ultrapassou dois milhões de espectadores e poderá se tornar o filme brasileiro de maior bilheteria da retomada, batendo os números de Xuxa e dos Trapalhões. É a prova de que o público não refuta a inteligência e a sensibilidade, ao contrário do que a televisão parece acreditar. É também um prêmio merecido para o talentosíssimo Guel Arraes, que vem oxigenando a telinha há tantos anos. Aplausos que devem ser divididos com atores excepcionais como Fernanda Montenegro, Matheus Nachtergaele e Selton Mello e com a equipe que vem colaborando com Guel Arraes ao longo dos anos.
Outra boa novidade. Jovens diretoras estreantes chegaram para renovar o cinema brasileiro, com filmes que reafirmam a qualidade polifônica da produção nacional. É o caso de Laís Bodanzky, reconhecida pelo público e pela crítica em Brasília por "Bicho de Sete Cabeças", filme corajoso que questiona os mecanismos da repressão na sociedade brasileira, e de Lina Chamie, realizadora de "Tônica Dominante", estruturado como uma sonata -cinema não falado.
Aprendo que Vittorio Gassman morreu. Tive o privilégio de conhecê-lo. A notícia deveria me entristecer, mas não. Não consigo me lembrar de um momento nos seus filmes em que Gassman não tenha me deixado com o sorriso nos lábios. Mesmo no final do soberbo "Nós Que nos Amávamos Tanto", de Ettore Scola, em que faz o papel de um homem que vende a alma e desaprende o que é a amizade, chora-se e ri-se ao mesmo tempo. Talvez Gassman tenha sido um dos raríssimos atores a ter este talento, o de dar dignidade até para os personagens mais indefensáveis.
Está impagável em "O Homem Que Sabe Viver", belo filme de Dino Risi. Faz o papel de um malandro romano, uma figura dionisíaca que contrasta com o personagem tímido vivido por Jean-Louis Trintignant. Gassman protagoniza nesse filme uma das cenas mais engraçadas já vistas no cinema. Dança numa festa com uma moça, os dois corpos juntinhos. Subitamente, a moça se assusta ao sentir uma protuberância no parceiro. Ela diz: "Ulalah". Gassman retruca : "Modestamente...".
"Arroz Amargo" (De Santis), "Os Monstros" (Risi), "O Incrível Exército de Brancaleone" (Monicelli), "A Família" (novamente Scola). Gassman foi, junto com Mastroianni, o ator mais expressivo do cinema italiano que aprendemos a amar.
Tive a oportunidade de gravar um dos seus espetáculos, um monólogo, em Gênova. No palco, Gassman defendia textos de Pirandello e Svevo com o vigor de um adolescente. Seu domínio do espaço cênico era impressionante. Aos 70 anos, corria, projetava-se contra o chão, raramente perdia o fôlego. Mas sentia o peso dos anos que nós não percebíamos nele. Não escondia a angústia, era de uma honestidade lancinante. Nunca me esquecerei das últimas frases que ele nos disse : "A vida não deveria ser uma, mas duas. A primeira para ensaiar, a segunda para viver". Um instante de melancolia, logo quebrado por um riso contagiante, que ainda ecoa no ar. Até breve.


O colunista Walter Salles volta a escrever quinzenalmente na Ilustrada, aos sábados, alternando suas colunas com Drauzio Varella


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