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BERNARDO CARVALHO
Corpo ausente
João Paulo Cuenca publicou
um conto poderoso no número
nove da revista "Ficções" (primeiro semestre de 2002). Narrava a
ida a um baile funk no morro do
Pavão, em Copacabana. O conto
foi desmembrado e alguns trechos
foram incluídos no primeiro romance do autor, "Corpo Presente", que acaba de sair pela Planeta.
O título do romance, seguido de
uma epígrafe de João Antônio,
pode causar algum mal-entendido: Cuenca presta homenagem ao
escritor paulista que elegeu a Copacabana do bas-fond, "civilização do quarto-e-sala", "cloaca",
como cenário de uma realidade
que, para ele, era "mais autêntica" do que a vida "de mentirinha" da pequena burguesia carioca. A diferença é que Cuenca
tem 25 anos e começou a publicar
na internet, a exemplo de muitos
outros da sua geração.
A combinação entre real e virtual, entre a idealização da descida aos infernos como "vida mais
verdadeira", à maneira de João
Antônio, e o mundo dos paraísos
artificiais dos blogs e chats faz diferença e deve servir de alerta para os que tendem a se contentar
com as aparências e ler romances
como se fossem relatos da experiência dos autores. A experiência
em "Corpo Presente" é o confronto com um mundo físico em permanente fuga, num tempo marcado pelo narcisismo, pela imaterialidade e pela irrealidade dos
encontros virtuais.
Se Cuenca é de fato uma bela
estréia literária, isso se deve a fatores bem mais interessantes do
que um suposto relato da experiência "verdadeira" do autor.
Todo escritor que se preza sabe
que os infernos reais, quando
transpostos para a literatura, são
sempre imaginários, são sempre
uma criação. Se a literatura é um
espaço privilegiado e libertário, é
justamente por dar à imaginação
o mesmo peso da vida.
O romance de Cuenca, em que
não há propriamente uma progressão narrativa, é composto por
capítulos designados por números primos (divisíveis apenas por
si mesmos e por um). Há uma lógica intransitiva na progressão
dos capítulos que anula a própria
progressão: os números primos
são todos iguais a um (quando divididos por eles mesmos) ou
iguais a eles mesmos (quando divididos por um). Para dar um
pouco mais de materialidade a
esse princípio, os três protagonistas do romance (Carmen, o narrador e Alberto) são intercambiáveis, todos um e o mesmo. Formam uma espécie de triângulo
em que o narrador pode ser filho
ou amante de Carmen, amigo de
Alberto ou o próprio Alberto (que
também pode ser marido, amante ou filho de Carmen), ou pode
ser Carmen, que às vezes é mãe,
outras vezes é puta.
Carmen encarna o real na cabeça do narrador, um sujeito em
permanente estado amoroso, em
permanente sentimento de perda.
Ela é o seu objeto do desejo, em
oposição à irrealidade ou à hipocrisia que o cerca: "Carmen não
me dá vontade de escrever. Se o
mundo fosse real como Carmen,
não teria nada a dizer". O que dá
vontade de escrever é a falta dela.
Só Carmen é real, "a única coisa
que realmente existe".
Contrariando o que diz, entretanto, o narrador escreve por causa dela (o livro é dedicado a Carmen, seja ela quem for). O que dá
a entender que Carmen é um corpo ausente ("Ao redor do corpo de
Carmen, todos pensam que teria
sido melhor terem morrido no seu
lugar"). Se o narrador escreve, é
para suprir, pela imaginação, a
ausência que nenhuma presença
pode suprir.
O título do livro ganha, assim,
uma rica ambiguidade. O "corpo
presente" não é apenas o corpo da
morta, ou o relato da experiência,
mas também o próprio livro,
transfiguração da falta. O que leva o autor a escrever é a vontade
de transformar a experiência ausente (passada ou perdida) em
presença, a morte em vida. O motor da escrita é a ausência. O corpo ausente é motivo do desejo, o
que não tem matéria nem fim (ao
contrário da experiência), o que
leva a escrever sem nunca se consumar ("O melhor que Alberto já
escreveu é o que nunca conseguiu
escrever").
A literatura é uma forma de
transfigurar a ausência em presença para sempre: "Carmen entrou na categoria de acontecimentos eternos. (...) Mesmo morta você está quente, Carmen. Eu
não consigo fazer você morrer em
mim. Sei que você está aqui neste
quarto, mesmo não estando. (...)
Morta, não vai parar de falar
dentro de mim (...) essa prece interminável (...). Carmen está em
mim".
Seria preciso uma certa dose de
pobreza de espírito para defender
a esta altura do campeonato a
ilusão de que só faz boa literatura
quem viveu na carne o que tem
para contar. Seria endossar uma
concepção empobrecida do que
significa viver (e escrever). Seria
reduzir a literatura ao depoimento. Seria descartar 90% do que de
melhor já se escreveu na história
da humanidade, o fim da imaginação, da invenção e da arte.
Basta estar vivo para contar.
Em literatura, a experiência é
sempre imaginária, por mais que
tenha sido vivida pelo autor (e ela
sempre é vivida, de uma forma ou
de outra, o que torna essa questão
totalmente secundária). O texto
literário não é apenas o relato de
uma experiência prévia; ele é a
própria experiência. O "Corpo
Presente", de João Paulo Cuenca,
está dizendo isso o tempo todo.
Para quem quiser ouvir.
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