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São Paulo, terça-feira, 09 de dezembro de 2003

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BERNARDO CARVALHO

Corpo ausente

João Paulo Cuenca publicou um conto poderoso no número nove da revista "Ficções" (primeiro semestre de 2002). Narrava a ida a um baile funk no morro do Pavão, em Copacabana. O conto foi desmembrado e alguns trechos foram incluídos no primeiro romance do autor, "Corpo Presente", que acaba de sair pela Planeta.
O título do romance, seguido de uma epígrafe de João Antônio, pode causar algum mal-entendido: Cuenca presta homenagem ao escritor paulista que elegeu a Copacabana do bas-fond, "civilização do quarto-e-sala", "cloaca", como cenário de uma realidade que, para ele, era "mais autêntica" do que a vida "de mentirinha" da pequena burguesia carioca. A diferença é que Cuenca tem 25 anos e começou a publicar na internet, a exemplo de muitos outros da sua geração.
A combinação entre real e virtual, entre a idealização da descida aos infernos como "vida mais verdadeira", à maneira de João Antônio, e o mundo dos paraísos artificiais dos blogs e chats faz diferença e deve servir de alerta para os que tendem a se contentar com as aparências e ler romances como se fossem relatos da experiência dos autores. A experiência em "Corpo Presente" é o confronto com um mundo físico em permanente fuga, num tempo marcado pelo narcisismo, pela imaterialidade e pela irrealidade dos encontros virtuais.
Se Cuenca é de fato uma bela estréia literária, isso se deve a fatores bem mais interessantes do que um suposto relato da experiência "verdadeira" do autor. Todo escritor que se preza sabe que os infernos reais, quando transpostos para a literatura, são sempre imaginários, são sempre uma criação. Se a literatura é um espaço privilegiado e libertário, é justamente por dar à imaginação o mesmo peso da vida.
O romance de Cuenca, em que não há propriamente uma progressão narrativa, é composto por capítulos designados por números primos (divisíveis apenas por si mesmos e por um). Há uma lógica intransitiva na progressão dos capítulos que anula a própria progressão: os números primos são todos iguais a um (quando divididos por eles mesmos) ou iguais a eles mesmos (quando divididos por um). Para dar um pouco mais de materialidade a esse princípio, os três protagonistas do romance (Carmen, o narrador e Alberto) são intercambiáveis, todos um e o mesmo. Formam uma espécie de triângulo em que o narrador pode ser filho ou amante de Carmen, amigo de Alberto ou o próprio Alberto (que também pode ser marido, amante ou filho de Carmen), ou pode ser Carmen, que às vezes é mãe, outras vezes é puta.
Carmen encarna o real na cabeça do narrador, um sujeito em permanente estado amoroso, em permanente sentimento de perda. Ela é o seu objeto do desejo, em oposição à irrealidade ou à hipocrisia que o cerca: "Carmen não me dá vontade de escrever. Se o mundo fosse real como Carmen, não teria nada a dizer". O que dá vontade de escrever é a falta dela. Só Carmen é real, "a única coisa que realmente existe".
Contrariando o que diz, entretanto, o narrador escreve por causa dela (o livro é dedicado a Carmen, seja ela quem for). O que dá a entender que Carmen é um corpo ausente ("Ao redor do corpo de Carmen, todos pensam que teria sido melhor terem morrido no seu lugar"). Se o narrador escreve, é para suprir, pela imaginação, a ausência que nenhuma presença pode suprir.
O título do livro ganha, assim, uma rica ambiguidade. O "corpo presente" não é apenas o corpo da morta, ou o relato da experiência, mas também o próprio livro, transfiguração da falta. O que leva o autor a escrever é a vontade de transformar a experiência ausente (passada ou perdida) em presença, a morte em vida. O motor da escrita é a ausência. O corpo ausente é motivo do desejo, o que não tem matéria nem fim (ao contrário da experiência), o que leva a escrever sem nunca se consumar ("O melhor que Alberto já escreveu é o que nunca conseguiu escrever").
A literatura é uma forma de transfigurar a ausência em presença para sempre: "Carmen entrou na categoria de acontecimentos eternos. (...) Mesmo morta você está quente, Carmen. Eu não consigo fazer você morrer em mim. Sei que você está aqui neste quarto, mesmo não estando. (...) Morta, não vai parar de falar dentro de mim (...) essa prece interminável (...). Carmen está em mim".
Seria preciso uma certa dose de pobreza de espírito para defender a esta altura do campeonato a ilusão de que só faz boa literatura quem viveu na carne o que tem para contar. Seria endossar uma concepção empobrecida do que significa viver (e escrever). Seria reduzir a literatura ao depoimento. Seria descartar 90% do que de melhor já se escreveu na história da humanidade, o fim da imaginação, da invenção e da arte.
Basta estar vivo para contar. Em literatura, a experiência é sempre imaginária, por mais que tenha sido vivida pelo autor (e ela sempre é vivida, de uma forma ou de outra, o que torna essa questão totalmente secundária). O texto literário não é apenas o relato de uma experiência prévia; ele é a própria experiência. O "Corpo Presente", de João Paulo Cuenca, está dizendo isso o tempo todo. Para quem quiser ouvir.


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