|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
"FAMÍLIA RODANTE"
"Road movie" otimista capta vida real
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
Existem labirintos em linha reta, ensinava Jorge Luis
Borges quase distraidamente. Outro argentino, Pablo Trapero, topou o desafio de trilhar um desses
caminhos misteriosos em seu
"Família Rodante".
Ali, Emilia decide deslocar-se
com toda sua vasta família de
Buenos Aires a Misiones, onde será madrinha de casamento de sua
sobrinha. Trata-se, portanto, de
atender a um chamado da irmã.
Quem recordar a história do velho Alvin Straight, de "História
Real" (David Lynch), não estará
longe da verdade. Alvin atravessava um longo território num carrinho de cortar grama para reencontrar o irmão, com quem estava brigado. Todo mundo estranha esse filme de Lynch: um filme
linear, estonteantemente linear
-ele que costuma fabricar labirintos para nos aprisionar dentro.
Talvez haja uma explicação (para
Lynch): a história de Straight é um
épico, uma história plena, não um
clichê como esses que povoam a
indústria de cinema e sobre os
quais Lynch fabrica suas fábulas.
O caso de "Família Rodante"
não é muito diferente. Aquele
trailer atravessando a estrada,
modelo 58, parece o caminhãozinho de "As Vinhas da Ira", tão
frágil e tenaz ao mesmo tempo. Lá
vão 12 pessoas, pelas contas da velha Emilia. Duas filhas, maridos,
netos e netas, uma amiga...
Há um pequeno mundo lá dentro, vivendo em torno da obsessão de Emilia, de chegar a tempo a
Misiones, não importa que o caminhão quebre, acabe a gasolina,
comece a dor de dente ou a polícia
rodoviária decida intervir na bagunça. A vida segue, tem de seguir. É disso que nos lembra todo
o tempo este filme belo, pela sensibilidade, e otimista pelo final.
Otimista porque no final há
uma festa. E as festas de certa forma curam todas as feridas do caminho. E talvez seja o caso de percorrer os caminhos apenas para
chegar à festa ao final e curar as feridas da caminhada.
Como no caso de outros bons
cineastas argentinos, Trapero filma sem frescura. Em vez de esbanjar recursos e movimentos de
câmera inúteis, trabalha seus atores até dar a impressão de que suprimiu qualquer interpretação.
Traz para seu filme a inteligência
literária argentina, mas sem colocá-la na tela como signo. Ela se
manifesta seja na fluência dos diálogos, seja na capacidade de observação de paisagens e pessoas.
Trapero já disse que sua facilidade para fazer este filme veio do
fato de que, na infância, sua família tinha um trailer como esse.
Que isso ajuda, ajuda. Mas há algo
mais em seus filmes, algo que já
era visível em "O Outro Lado da
Lei", que é um sincero desejo de
compreender e acolher seus personagens -as pessoas, em suma-, com suas virtudes, defeitos
e limitações. Talvez isso torne
uma dor de dente tão interessante: há gente de verdade, ali, algo
capaz de transformar uma simples história em história real.
Família Rodante
Direção: Pablo Trapero
Produção: Argentina/Brasil/França/Alemanha/Espanha/Reino Unido, 2004
Com: Graciana Chironi, Liliana Capurro
Quando: a partir de hoje nos cines
Bombril, Lumière e Frei Caneca Arteplex
Texto Anterior: Crítica: Reichenbach filma sentimentos dos feridos pela história Próximo Texto: Cinema: Documentário aborda o fascínio pela política Índice
|