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FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
Beckett e o fim da festa
Dois ensaios discutem o papel central que a prosa e o teatro do autor desempenham na cena moderna
SE O CENTENÁRIO de Samuel
Beckett (1906-1989), celebrado ao longo deste ano, não pôde reverter completamente o quadro de lacunas locais, cabe comemorar os indícios, ainda tímidos, de
uma virada. Entre eles, destaque para as novelas "O Expulso", "O Calmante" e "O Fim", primeiras tentativas de ficção em francês, nas quais
toma corpo o herói beckettiano característico -errante, irônico, perturbador- que ganharam tradução
de Eloísa Araújo Ribeiro ("Novelas"), juntando-se à contemporânea
"Primeiro Amor", vertida em 2004.
Dois ótimos ensaios, recém-editados pela 7Letras, discutem o papel
central que a prosa e o teatro de Beckett desempenham na cena moderna. De Ana Helena Souza, tradutora
de importante romance beckettiano
("Como É"), saiu "A Tradução como
um Outro Original", enfocando o bilingüismo peculiar do autor (oscilando entre duas línguas e traduzindo a si mesmo) e as dificuldades de
uma prosa que, tocada por um narrador que se põe em xeque a cada
passo, rarefaz o enredo, dissolve os
personagens, abandona a pontuação, abraça a elipse e a repetição como procedimentos.
Atriz e pesquisadora carioca que
já adaptou a prosa beckettiana
("Molloy") para os palcos, Isabel Cavalcanti, em "Eu que Não Estou Aí
Onde Estou", parte do impacto visual único da peça "Eu Não" (uma
boca mínima, suspensa e solitária,
convocada à fala frenética e involuntária por um foco de luz, fugindo da
identificação, testemunhada por um
ouvinte togado, esboçando gestos de
compaixão silenciosa) para investigar uma poética cênica que encarna
a dissolução do sujeito, testemunha
irônica e não-privilegiada de si.
Mas nem tudo é festa. Ao contrário da obra teatral que, mesmo longamente fora do mercado editorial,
circulou em traduções específicas
para o palco, a ficção beckettiana
vem sendo vertida para o português
do Brasil em ritmo de conta-gotas.
Nada das narrativas anteriores à Segunda Guerra ("More Pricks than
Kicks", "Murphy", "Watt") chegou
por aqui. A trilogia romanesca escrita em francês, no pós-guerra, composta pelos essenciais "Molloy",
"Malone Morre" e "O Inominável",
saiu nos anos 1980, mas os volumes,
esgotados, não foram reimpressos, à
exceção do intermediário, reeditado
pela Códex, em 2005.
Quanto ao Beckett tardio, das formas breves e dos "faux départs", silêncio, descontados "Companhia"
(tradução de Elsa Martins, pela
Francisco Alves, 1982), um dos três
romances da chamada segunda trilogia, e "Ping", miniatura traduzida
por Haroldo de Campos e Maria Helena Kopfschitz. Para os que não se
dão ao luxo de ignorar a importância
fundamental da revolução proposta
pelas experiências beckettianas
com a "última pessoa narrativa" esboçadas nesta fase, o remédio precário e parcial continua sendo as traduções portuguesas.
EU QUE NÃO ESTOU AÍ ONDE ESTOU
Autora: Isabel Cavalcanti
Quanto: R$ 25 (122 págs.)
A TRADUÇÃO COMO UM OUTRO ORIGINAL
Autora: Ana Helena Souza
Editora: 7Letras (ambos)
Quanto: R$ 29 (176 págs.)
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