São Paulo, sábado, 09 de dezembro de 2006

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FÁBIO DE SOUZA ANDRADE

Beckett e o fim da festa

Dois ensaios discutem o papel central que a prosa e o teatro do autor desempenham na cena moderna

SE O CENTENÁRIO de Samuel Beckett (1906-1989), celebrado ao longo deste ano, não pôde reverter completamente o quadro de lacunas locais, cabe comemorar os indícios, ainda tímidos, de uma virada. Entre eles, destaque para as novelas "O Expulso", "O Calmante" e "O Fim", primeiras tentativas de ficção em francês, nas quais toma corpo o herói beckettiano característico -errante, irônico, perturbador- que ganharam tradução de Eloísa Araújo Ribeiro ("Novelas"), juntando-se à contemporânea "Primeiro Amor", vertida em 2004.
Dois ótimos ensaios, recém-editados pela 7Letras, discutem o papel central que a prosa e o teatro de Beckett desempenham na cena moderna. De Ana Helena Souza, tradutora de importante romance beckettiano ("Como É"), saiu "A Tradução como um Outro Original", enfocando o bilingüismo peculiar do autor (oscilando entre duas línguas e traduzindo a si mesmo) e as dificuldades de uma prosa que, tocada por um narrador que se põe em xeque a cada passo, rarefaz o enredo, dissolve os personagens, abandona a pontuação, abraça a elipse e a repetição como procedimentos.
Atriz e pesquisadora carioca que já adaptou a prosa beckettiana ("Molloy") para os palcos, Isabel Cavalcanti, em "Eu que Não Estou Aí Onde Estou", parte do impacto visual único da peça "Eu Não" (uma boca mínima, suspensa e solitária, convocada à fala frenética e involuntária por um foco de luz, fugindo da identificação, testemunhada por um ouvinte togado, esboçando gestos de compaixão silenciosa) para investigar uma poética cênica que encarna a dissolução do sujeito, testemunha irônica e não-privilegiada de si.
Mas nem tudo é festa. Ao contrário da obra teatral que, mesmo longamente fora do mercado editorial, circulou em traduções específicas para o palco, a ficção beckettiana vem sendo vertida para o português do Brasil em ritmo de conta-gotas.
Nada das narrativas anteriores à Segunda Guerra ("More Pricks than Kicks", "Murphy", "Watt") chegou por aqui. A trilogia romanesca escrita em francês, no pós-guerra, composta pelos essenciais "Molloy", "Malone Morre" e "O Inominável", saiu nos anos 1980, mas os volumes, esgotados, não foram reimpressos, à exceção do intermediário, reeditado pela Códex, em 2005.
Quanto ao Beckett tardio, das formas breves e dos "faux départs", silêncio, descontados "Companhia" (tradução de Elsa Martins, pela Francisco Alves, 1982), um dos três romances da chamada segunda trilogia, e "Ping", miniatura traduzida por Haroldo de Campos e Maria Helena Kopfschitz. Para os que não se dão ao luxo de ignorar a importância fundamental da revolução proposta pelas experiências beckettianas com a "última pessoa narrativa" esboçadas nesta fase, o remédio precário e parcial continua sendo as traduções portuguesas.


EU QUE NÃO ESTOU AÍ ONDE ESTOU    
Autora: Isabel Cavalcanti
Quanto: R$ 25 (122 págs.)

A TRADUÇÃO COMO UM OUTRO ORIGINAL    
Autora: Ana Helena Souza
Editora: 7Letras (ambos)
Quanto: R$ 29 (176 págs.)


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