São Paulo, sábado, 09 de dezembro de 2006

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crítica

Dennis Lehane se inspira no cinema antigo

CRÍTICO DA FOLHA

Numa das cenas do novo romance de Dennis Lehane, autor de "Sobre Meninos e Lobos", o detetive Patrick Kenzie é ameaçado por um dos mandatários da máfia italiana de Boston.
O episódio se dá durante um "brunch" no qual se reúnem "capos" locais, seus asseclas, mulheres e filhos. Na mansão suburbana, alguns bebericam coquetéis de laranja com champanhe na sala enquanto o chefão, nanico, de avental e ostentando um imenso topete negro, grelha pedaços de bisteca na churrasqueira do jardim.
Em que filme de Coppola, Brian De Palma ou Martin Scorsese vimos esse quadro?
Para deixar claro de que não se trata de coincidência, Kenzie, um cinéfilo contumaz, discorre sobre filmes antigos e chega a exclamar: "Para onde é que você foi, Burt Lancaster, e por que levou embora quase tudo o que havia de bom?".
Sabe-se que o sistema narrativo dos filmes deriva em grande parte da literatura realista do século 19. Já faz algum tempo, e "Dança da Chuva" é um bom exemplo, que o cinema, sobretudo o americano, inspira a literatura. Lemos o livro de Lehane, com seus diálogos espertos e cenas plásticas, como se assistíssemos a uma produção hollywoodiana.
"Dança da Chuva" clama desde a epígrafe pelos tempos idos, por um momento em que as histórias tinham sentido e a modernidade não havia estilhaçado as referências anteriores. Essa aspiração retrógrada faz par com o sentimento puritano que parece constituir a última centelha de realidade a animar personagens tomados por tamanha irrealidade.
As peripécias de Kenzie iniciam quando um tipo perverso, por algum motivo desconhecido, induz uma boa moça ao suicídio. O modus operandi do psicopata é atormentar tanto suas vítimas que elas desejam a morte.
Ele tenta essas pessoas como Deus tentou Jó: tira-lhes a razão de viver. Kenzie sai no encalço desse deus mau que impera no mundo ilógico em que seres de celulóide agem movidos por uma vaga noção cristã que não questionam nem entendem.
O capanga de Kenzie lhe é fiel porque é assim que deve ser, a ex-mulher do herói continua a dar-lhe apoio porque isso é o certo. Em nome da decência, os mocinhos tomam a justiça nas próprias mãos. Em que faroeste que vimos essa situação? (MP)

DANÇA DA CHUVA   
Autor: Dennis Lehane
Tradução: Luciano Vieira Machado
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 44 (424 págs.)


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