São Paulo, sábado, 10 de janeiro de 1998.




Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Um momento da consciência

CARLOS HEITOR CONY
Colunista da Folha

De um lado havia a maioria que condenava um homem. De outro, aquilo que Anatole France chamaria de "consciência humana". Émile Zola, apesar de ser considerado o sucessor de Balzac no romance do século 19, era tido como imoral e traidor da França (ele havia escrito "La Déblâcle", sobre o desastre francês na guerra de 1870). Quando começou o Caso Dreyfus, estava em Roma, colhendo material para escrever a trilogia que incluía Paris e Lourdes.
Não deu maior importância ao caso. Quando voltou de Roma, surgiu uma dúvida sobre o túmulo de Voltaire no Panteão. Dizia-se que ali não estavam os restos mortais do escritor, mas um monte de pedras. Uma comissão foi averiguar, abriram o túmulo, eram ossos mesmo. Zola fazia parte do grupo e reparou que, em cima do túmulo, estava a inscrição que Voltaire escolhera para seu epitáfio: "Ele defendeu Calas".
Em 1762, num conflito religioso, Jean Calas e outros foram presos como huguenotes e sacrificados. Voltaire soltou um brado que fez a Europa estremecer.
Zola havia escrito bem antes de explodir o caso Dreyfus: "A defesa de Jean Calas ficou sendo um dos grandes documentos da nossa civilização. Egoísta e cético, vivendo tranquilamente em seu castelo perto de Berna, Voltaire não ficou indiferente diante da injustiça". E acrescentava: "Ser incapaz de ler um jornal sem empalidecer de cólera! Sentir a contínua e irresistível necessidade de gritar bem alto aquilo que pensamos, principalmente quando somos os únicos a pensar assim!".
Era o roteiro de uma escalada que, na devida hora, levaria Zola a ter um túmulo ao lado de Voltaire, no Panteão da glória francesa.
Sua participação no Caso Dreyfus foi gradual. Ele escrevera três artigos para o "Figaro", denunciando as fraudes processuais e a conspiração oficial para que o Exército não ficasse desmoralizado pelo julgamento iníquo que condenara o capitão judeu. Já se sabia quem havia escrito o borderô, corpo de delito da traição que dera início ao processo.
Mas estava longe a hipótese do Exército libertar e recuperar a honra de Dreyfus, que continuava preso na Ilha do Diabo.
Morreu Alphonse Daudet, um dos maiores amigos de Zola. Ele falava diante do túmulo quando uma pedra bateu-lhe na testa: "Morra Zola, o traidor"! E ele havia apenas escrito três artigos quase rotineiros.
Daí em diante, Zola sentiu que tinha de ir em frente. Era a consciência do homem contra a violência, contra o arbítrio, contra a injustiça. Formara-se um grupo de aliados, entre os quais Clemenceau, que lhe abriu a primeira página do "L'Aurore".
O texto original que Zola enviou à redação tinha um título formal: "Carta a M. Felix Faure, presidente da República". Mas Clemenceau prestou atenção ao trecho final da carta. Zola iniciava cada parágrafo com "Eu acuso...". O mais importante artigo já escrito na imprensa ganhava o título que passou à história.
O caso Dreyfus não acabou com a carta de Zola. Mas a revisão do processo tornou-se inevitável. Ele foi processado, exilou-se em Londres, sofreu infâmias, foi chamado de romancista menor e vazio, embora tivesse escrito duas obras-primas da literatura mundial: "Germinal" e "L'Assommoir".
Como Voltaire, ele arriscou a vida em defesa de um inocente. Momento da consciência de um homem, Zola não defendeu apenas um inocente, mas lavou a honra da humanidade.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.