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Um momento da consciência
CARLOS HEITOR CONY
Colunista da Folha
De um lado havia a maioria que
condenava um homem. De outro,
aquilo que Anatole France chamaria de "consciência humana".
Émile Zola, apesar de ser considerado o sucessor de Balzac no romance do século 19, era tido como
imoral e traidor da França (ele havia escrito "La Déblâcle", sobre o
desastre francês na guerra de
1870). Quando começou o Caso
Dreyfus, estava em Roma, colhendo material para escrever a trilogia
que incluía Paris e Lourdes.
Não deu maior importância ao
caso. Quando voltou de Roma,
surgiu uma dúvida sobre o túmulo
de Voltaire no Panteão. Dizia-se
que ali não estavam os restos mortais do escritor, mas um monte de
pedras. Uma comissão foi averiguar, abriram o túmulo, eram ossos mesmo. Zola fazia parte do
grupo e reparou que, em cima do
túmulo, estava a inscrição que
Voltaire escolhera para seu epitáfio: "Ele defendeu Calas".
Em 1762, num conflito religioso,
Jean Calas e outros foram presos
como huguenotes e sacrificados.
Voltaire soltou um brado que fez a
Europa estremecer.
Zola havia escrito bem antes de
explodir o caso Dreyfus: "A defesa
de Jean Calas ficou sendo um dos
grandes documentos da nossa civilização. Egoísta e cético, vivendo
tranquilamente em seu castelo
perto de Berna, Voltaire não ficou
indiferente diante da injustiça". E
acrescentava: "Ser incapaz de ler
um jornal sem empalidecer de cólera! Sentir a contínua e irresistível
necessidade de gritar bem alto
aquilo que pensamos, principalmente quando somos os únicos a
pensar assim!".
Era o roteiro de uma escalada
que, na devida hora, levaria Zola a
ter um túmulo ao lado de Voltaire,
no Panteão da glória francesa.
Sua participação no Caso Dreyfus foi gradual. Ele escrevera três
artigos para o "Figaro", denunciando as fraudes processuais e a
conspiração oficial para que o
Exército não ficasse desmoralizado pelo julgamento iníquo que
condenara o capitão judeu. Já se
sabia quem havia escrito o borderô, corpo de delito da traição que
dera início ao processo.
Mas estava longe a hipótese do
Exército libertar e recuperar a
honra de Dreyfus, que continuava
preso na Ilha do Diabo.
Morreu Alphonse Daudet, um
dos maiores amigos de Zola. Ele
falava diante do túmulo quando
uma pedra bateu-lhe na testa:
"Morra Zola, o traidor"! E ele havia apenas escrito três artigos quase rotineiros.
Daí em diante, Zola sentiu que
tinha de ir em frente. Era a consciência do homem contra a violência, contra o arbítrio, contra a injustiça. Formara-se um grupo de
aliados, entre os quais Clemenceau, que lhe abriu a primeira página do "L'Aurore".
O texto original que Zola enviou
à redação tinha um título formal:
"Carta a M. Felix Faure, presidente da República". Mas Clemenceau prestou atenção ao trecho final da carta. Zola iniciava cada parágrafo com "Eu acuso...". O
mais importante artigo já escrito
na imprensa ganhava o título que
passou à história.
O caso Dreyfus não acabou com
a carta de Zola. Mas a revisão do
processo tornou-se inevitável. Ele
foi processado, exilou-se em Londres, sofreu infâmias, foi chamado
de romancista menor e vazio, embora tivesse escrito duas
obras-primas da literatura mundial: "Germinal" e "L'Assommoir".
Como Voltaire, ele arriscou a vida em defesa de um inocente. Momento da consciência de um homem, Zola não defendeu apenas
um inocente, mas lavou a honra da
humanidade.
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