São Paulo, Segunda-feira, 10 de Janeiro de 2000


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LITERATURA

Cadão Volpato faz da vida laboratório de experiências

JOSÉ GERALDO COUTO
da Equipe de Articulistas

Os 23 textos que compõem "Dezembro de um Verão Maravilhoso", o segundo livro de Cadão Volpato, não são propriamente contos. Em vez de relatar histórias, eles compõem cenas, atmosferas, fragmentos da experiência vivida ou imaginada.
Terminada a leitura de cada um desses breves textos, é difícil resumir o que se descreveu ali. O que fica em nós é como o resíduo esgarçado de um sonho ou de uma lembrança longínqua.
Não que se trate de personagens e situações etéreas ou inefáveis. Os personagens e cenários são, pelo contrário, os mais ordinários: namoros furtivos entre colegas de aula ou de trabalho, o resgate dos ossos de um cão enterrado no quintal, o show de um mágico de botequim...
O que torna insólitos e fugidios esses instantâneos, banhando-os numa luz quase espectral, é o modo oblíquo e elíptico como Volpato os apresenta.
Escondidos no seio da prosa aparentemente mais espontânea, há pelo menos dois procedimentos narrativos dignos de nota.
O primeiro é o de descrever sempre as situações como que a partir de sua periferia, dando relevo àquilo que, num relato convencional, seria desimportante.
Desse modo, o leitor é obrigado a construir o essencial do drama com base nas pistas (dadas como que por acaso) e silêncios do texto.
Por essa via, várias são as narrativas ocultas possíveis, e mais numerosos ainda os sentidos que se podem dar a elas. Avaro, o texto de Volpato se multiplica com a participação do leitor.
A par dessa manobra de potencialização do sentido, em que o menos vale mais, há nesses relatos uma dissolução da hierarquia entre o que é principal e o que é secundário.
Como no filme "O Fantasma da Liberdade", de Luis Buñuel, muitas vezes o personagem que começa como coadjuvante num determinado conto ganha o primeiro plano no parágrafo seguinte, graças ao olhar onívoro do narrador (tanto em primeira como em terceira pessoa).
Há aí uma sutil declaração de princípios: toda vida humana, toda minúscula partícula de experiência merece ser iluminada, mesmo que seja por um instante.
Nesse olhar que se desloca, que é alternadamente feminino e masculino, adulto e infantil, é possível reconhecer sempre o humanismo radical de Cadão Volpato, escritor que, à maneira dos surrealistas, faz da própria experiência de vida um laboratório de criação e reflexão.
Não por acaso, referências autobiográficas pontuam quase todos os contos: num deles, o personagem é ator de um comercial de leite; em outro, revisor; em outro, letrista de rock; em outro, militante trotskista.
Cadão Volpato é ou foi um pouco de tudo isso. E dá a impressão, retrospectivamente, de ter vivido essas coisas para transformá-las em literatura. Agora é a literatura que volta para a vida.
Outro ponto que aproxima o autor do ideário surrealista é o gosto pelas imagens insólitas, formadas pela aproximação entre realidades díspares.
Esse procedimento -que tem seu paradigma na célebre frase de Lautréamont: "Belo como o encontro fortuito entre um guarda-chuva e uma máquina de costura sobre uma mesa de dissecação"- é responsável por alguns pontos altos e quase todos os pontos baixos do livro.
Um exemplo está logo na primeira página: "Sinto sua falta -branca, providencial, gritante e um pouco vermelha (nas maçãs do rosto) como uma ambulância".
Em momentos assim, Volpato parece deixar-se levar pelas facilidades perigosas da metáfora.
É um risco menor, numa obra notável por seu caráter inventivo, íntegro e original.


Avaliação:   



Livro: Dezembro de um Verão Maravilhoso
Autor: Cadão Volpato
Editora: Iluminuras
Quanto: R$ 15,30 (94 págs.)



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