São Paulo, terça-feira, 10 de fevereiro de 2004

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FERNANDO BONASSI

Breves considerações a respeito dessas épocas

Há sempre a possibilidade, como torres são derrubadas, que pontes sejam erguidas. Também é provável que prevaleça a ignorância acima de todas as expectativas. É possível que os maus atores continuem sendo maus políticos e que os bons atores continuem fazendo bobagens em nome de ter os pés cimentados nas calçadas de fama duvidosa. É possível que os fabricantes de armas triunfem e que os usurários nos tomem a vergonha da cara. É provável que as crianças continuem morrendo por estarem vivas e que os homens de negócio continuem sendo fuzilados nas esquinas, agarrados aos Rolex falsificados.
Mas há épocas em que escombros são transformados em países e épocas em que países se transformam em piadas. É provável que a insistência nos faça cegos. Que sejam os surdos a ouvirem nossas preces. É provável que nossa raiva nos prejudique... mas somos resistentes, se somos! A vida se impõe e nós queremos a nossa parte. Alguns querem em dinheiro, outros querem em afeto. Todos querem alguma coisa. Todos merecem o mesmo. Mesmo sem querer, quero dizer.
Convém apenas lembrar que há épocas em que os defuntos levantam, as calças abaixam e a moral faz água. Há épocas em que se repara nos dentes das éguas, em que somos tratados feito boiada e épocas em que nos sentimos as feras do momento. Há épocas em que os médicos consultam-se em corporações, em que os juízes desrespeitam as leis e há épocas em que advogados de porta de cadeia são capazes de destruir sistemas cansados com um laudo. Há épocas em que as elites nos legam tradições e épocas em que nos legam traições ou dívidas. Há épocas em que o sangue ferve e outras em que ele espirra. Há épocas em que dão tiros nos pés e épocas em que se atiram no escuro. Há épocas em que os soldados são honrados e épocas em que espancam os compatriotas. Há épocas em que os passaportes têm saída e épocas em que são negados. Há épocas em que os diplomatas arregaçam as mangas e épocas em que se apoiam em canapés e champanhe. Há épocas em que os religiosos estão com o diabo no corpo, os empresários apóiam as piores causas e os funcionários se burocratizam ainda mais. Há épocas em que os professores ensinam pensadores e há épocas em que fazem o que mandam pelo que recebem. Há épocas de duras provas e épocas em que qualquer imbecil passa de ano. Há épocas em que um ano dura um segundo e épocas em que dura um século.
Há épocas em que nossos amantes nos traem, que os trens descarrilam e que o ressentimento é a única memória que nos resta. Há épocas em que o passado ilumina o futuro e épocas em que é melhor não estar presente. Há épocas em que os sobrenomes não adiantam. Há épocas em que fazem diferença. Há épocas em que o interesse cresce mais do que o desejo e o despejo mais do que o aluguel. Há épocas de desordem e atraso. Há épocas em que com pouco dinheiro se conhece o mundo e épocas em que os habitantes deste planeta esmolam trocados.
Há épocas em que as necessidades são procuradas. Não há registro de que sejam satisfeitas, mas há épocas mais felizes que outras. Há épocas de esplendor e de decadência, de idiotice assumida e de assumida consciência. Há épocas em que as obras são mal cheirosas, em que os tapetes ficam inchados de evidências. Há épocas em que as vilezas são reveladas e épocas em que fazemos questão de ungir canalhas. Pois há épocas em que os linchadores opinam nos destinos nacionais e épocas em que são postos na cadeia. Assim tem sido, mais ou menos...
Há épocas em que as intenções são melhores, os investimentos são maciços e os resultados são mesquinhos.
Há épocas em que se tira proveito do inferno.
Há épocas em que as vacas são magras, os ratos são raros e os tumores são benignos. Há épocas em que concordar num assunto já é suficiente, mas há épocas em que tudo aparece pouco. Há épocas de guerra, de gozar na cama, de arar a terra, de cair na lama. Há épocas que têm alma e épocas que são malas. Há épocas de incerteza e épocas de vontade. Há épocas de desprezo e épocas de esperança. Há épocas em que descobrimos as palavras e épocas em que, por gestos simples de entender, as evitamos.
Há épocas que são racionais e épocas que dão dor de cabeça. Há épocas em que pensamos com outra cabeça e épocas em que as temos erguidas. Porque há épocas em que estamos verdadeiramente preocupados e épocas em que queremos mais é que se...
Há épocas em que um terço parte, um terço fica e um terço morre. Há épocas em que se reza mais que outras. Há épocas em que Deus some e épocas em que Deus ajuda. Há épocas em que todos juram qualquer coisa que os faça perseguir qualquer um. Há épocas que estamos contentes conosco. Há épocas em que os telefones nos aproximam e outras em que nos oprimem com seus toques. Há épocas em que as penas são leves e as contas impagáveis. Há épocas em que fazemos questão de saber o que acontece e épocas em que nos escondemos atrás de sete mil portas fechadas a quarenta e nove mil chaves.
Há sempre uma escolha.
Há épocas que são épicas e épocas que são poucas.

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