São Paulo, sábado, 10 de fevereiro de 2007

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"Buena Onda" não existe, diz Martel

Cineasta argentina de "O Pântano" afirma que não há em seu país um movimento que compartilhe valores estéticos e políticos

Diretora, que fez palestra em SP, conta que assiste a poucos filmes brasileiros e que não viu "Cidade de Deus" por causa da violência


Bruno Miranda/Folha Imagem
Lucrecia Martel, para quem David Lynch é o melhor diretor do cinema americano atualmente


SÉRGIO RIZZO
CRÍTICO DA FOLHA

Quando esteve pela primeira vez em São Paulo, para exibir "Rey Muerto" no Festival Internacional de Curtas-Metragens de 1995, a argentina Lucrecia Martel, 40, era ainda tão desconhecida do público quanto os demais colegas que dividiam com ela a Mostra Latino-Americana, como o argentino Adrián Caetano e o chileno Andrés Wood.
Em seu retorno à cidade, na última quinta, para uma palestra na Academia Internacional de Cinema, o status de Martel é bem outro, assim como o de Caetano ("Crônica de uma Fuga") e Wood ("Machuca"). Hoje, os três são expoentes do novo cinema latino-americano, que a imprensa internacional batizou como a "buena onda".
Para a diretora de "O Pântano" (2001) e "A Menina Santa" (2004), o carimbo não procede. Com seus óculos de mulher-gato, ao lado do notebook, de uma caixa de charutos e de um exemplar de "La Deriva", do ator e diretor teatral argentino Daniel Veronese, Martel falou à Folha sobre cinema, barcos e piscinas.
 

FOLHA - Faz sentido falar em "buena onda" como um movimento?
LUCRECIA MARTEL -
Não, não. Não existem, neste momento histórico que atravessa o mundo, condições para que haja uma nova onda de qualquer coisa. Movimento é algo em que os cineastas compartilham algo -valores estéticos, idéias políticas. Mesmo na Argentina, nos vemos quando nos encontramos em festivais. Não se pode dizer que haja um grupo de amigos que produzam obras comuns. Tenho contato com alguns deles porque moramos perto, ou porque temos amizade, mas não nos encontramos para conversar sobre cinema.

FOLHA - Você acompanha o cinema brasileiro atual?
MARTEL -
Muito pouco. Na Argentina, não é fácil ver filmes brasileiros. Às vezes, vejo em festivais. Os filmes de Walter Salles passaram na Argentina. "Cidade de Deus" também. Salles é um diretor muito sólido. Ele tem feito também algo muito interessante para o cinema latino-americano, que é conectar as pessoas, buscar conhecer diretores de todos os países.

FOLHA - E "Cidade de Deus"?
MARTEL -
Não o vi. Tenho um problema: em certos momentos de minha vida, não posso ver filmes muito violentos. Não sei se ele é mesmo violento, mas o trailer era. Naquela ocasião, preferi não ver. Espero que em algum momento possa conhecê-lo. Isso ocorre com alguns filmes por razões pessoais. Em geral, passa um tempo e aí consigo vê-los, em DVD.

FOLHA - Quem você admira no cenário internacional?
MARTEL -
Gosto de muitos cineastas: Bruno Dumont, Pedro Almodóvar, David Lynch, que é quem mais me agrada no cinema dos EUA hoje. Gosto do cinema coreano, do cinema asiático de terror, que me diverte.

FOLHA - E que é violento.
MARTEL -
Sim, mas isso está apresentado de tal forma no campo do fantástico que me chega de outra maneira. A violência de tom mais realista é a que não me atrai. E a vertente de tortura física também não. Na verdade, não sou uma grande consumidora de cinema.

FOLHA - Sua rotina de criação é solitária?
MARTEL -
Gosto muito de ficar em casa. E o trabalho, sim, é solitário, porque prefiro escrever sozinha. Mas o período entre um filme e outro é longo porque diversifico minha atenção em um bocado de coisas, que fisicamente demandam sair de casa, aprender temas novos. Barcos, por exemplo. Estive em Fortaleza (CE) para ver as jangadas de pescadores. Não sei por quê, mas eles me fascinam desde criança. Comprei recentemente um pequeno barco de madeira. Não me interesso pela regata, pela competição esportiva, e sim pelo conhecimento, pela experiência humana. Uso o barco no delta do rio da Prata. Planejo um dia chegar até o Paraguai (risos).

FOLHA - A água exerce papel importante em seus dois longas.
MARTEL -
Sim. Eu me dei conta depois, quando terminei os filmes. Não me agrada a idéia de lago privado embutida em uma piscina. Mas creio que não tenha uma obsessão com a água.

FOLHA - Seus filmes provocam reações muito diversas.
MARTEL -
Não penso nas interpretações que virão, mas acredito que o processo de criação tenha a ver com isso. Gosto de percorrer terrenos mais indefinidos, mais ambíguos, e isso sempre gera maiores possibilidades de interpretação. Não faço isso para que o público se desconcerte, e sim porque me parece que por aí se revelam as coisas. Quando me perguntam o que quero dizer com meus filmes, digo que não quero dizer nada. Quero compartilhar com o espectador um tempo, uma situação, uma emoção, uma conversa. Isso é mais importante para mim do que contar uma história. É o desejo de se comunicar, que nos move.

FOLHA - O posicionamento de câmera parece representar o olhar de uma criança curiosa, ainda incapaz de compreender o que vê.
MARTEL -
Isso é consciente. Para mim, essa deve ser a posição da câmera, sempre. A curiosidade, o assombro, são coisas que o mundo está perdendo. A vida urbana, do trabalho, dos compromissos, faz perder a curiosidade e uma espécie de atenção muito especial. A posição que uso é a do olhar de quem está se formando, aprendendo, e não está julgando. Para mim, a câmera precisa estar sempre no lugar de uma pessoa. Por isso não uso grua. Não assumi essa postura conscientemente desde o início; me dei conta disso quando filmava "O Pântano". Para ser coerente em todo o filme, precisava manter a câmera assim.


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