|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
"Buena Onda" não existe, diz Martel
Cineasta argentina de "O Pântano" afirma que não há em seu país um movimento que compartilhe valores estéticos e políticos
Diretora, que fez palestra em SP, conta que assiste a poucos filmes brasileiros e que não viu "Cidade de Deus" por causa da violência
Bruno Miranda/Folha Imagem
|
Lucrecia Martel, para quem David Lynch é o melhor diretor do cinema americano atualmente |
SÉRGIO RIZZO
CRÍTICO DA FOLHA
Quando esteve pela primeira
vez em São Paulo, para exibir
"Rey Muerto" no Festival Internacional de Curtas-Metragens de 1995, a argentina Lucrecia Martel, 40, era ainda tão
desconhecida do público quanto os demais colegas que dividiam com ela a Mostra Latino-Americana, como o argentino
Adrián Caetano e o chileno Andrés Wood.
Em seu retorno à cidade, na
última quinta, para uma palestra na Academia Internacional
de Cinema, o status de Martel é
bem outro, assim como o de
Caetano ("Crônica de uma Fuga") e Wood ("Machuca"). Hoje, os três são expoentes do novo cinema latino-americano,
que a imprensa internacional
batizou como a "buena onda".
Para a diretora de "O Pântano" (2001) e "A Menina Santa"
(2004), o carimbo não procede.
Com seus óculos de mulher-gato, ao lado do notebook, de uma
caixa de charutos e de um
exemplar de "La Deriva", do
ator e diretor teatral argentino
Daniel Veronese, Martel falou à
Folha sobre cinema, barcos e
piscinas.
FOLHA - Faz sentido falar em "buena onda" como um movimento?
LUCRECIA MARTEL - Não, não. Não
existem, neste momento histórico que atravessa o mundo,
condições para que haja uma
nova onda de qualquer coisa.
Movimento é algo em que os cineastas compartilham algo
-valores estéticos, idéias políticas. Mesmo na Argentina, nos
vemos quando nos encontramos em festivais. Não se pode
dizer que haja um grupo de
amigos que produzam obras
comuns. Tenho contato com alguns deles porque moramos
perto, ou porque temos amizade, mas não nos encontramos
para conversar sobre cinema.
FOLHA - Você acompanha o cinema brasileiro atual?
MARTEL - Muito pouco. Na Argentina, não é fácil ver filmes
brasileiros. Às vezes, vejo em
festivais. Os filmes de Walter
Salles passaram na Argentina.
"Cidade de Deus" também. Salles é um diretor muito sólido.
Ele tem feito também algo muito interessante para o cinema
latino-americano, que é conectar as pessoas, buscar conhecer
diretores de todos os países.
FOLHA - E "Cidade de Deus"?
MARTEL - Não o vi. Tenho um
problema: em certos momentos de minha vida, não posso
ver filmes muito violentos. Não
sei se ele é mesmo violento,
mas o trailer era. Naquela ocasião, preferi não ver. Espero
que em algum momento possa
conhecê-lo. Isso ocorre com alguns filmes por razões pessoais. Em geral, passa um tempo e aí consigo vê-los, em DVD.
FOLHA - Quem você admira no cenário internacional?
MARTEL - Gosto de muitos cineastas: Bruno Dumont, Pedro
Almodóvar, David Lynch, que é
quem mais me agrada no cinema dos EUA hoje. Gosto do cinema coreano, do cinema asiático de terror, que me diverte.
FOLHA - E que é violento.
MARTEL - Sim, mas isso está
apresentado de tal forma no
campo do fantástico que me
chega de outra maneira. A violência de tom mais realista é a
que não me atrai. E a vertente
de tortura física também não.
Na verdade, não sou uma grande consumidora de cinema.
FOLHA - Sua rotina de criação é solitária?
MARTEL - Gosto muito de ficar
em casa. E o trabalho, sim, é solitário, porque prefiro escrever
sozinha. Mas o período entre
um filme e outro é longo porque diversifico minha atenção
em um bocado de coisas, que fisicamente demandam sair de
casa, aprender temas novos.
Barcos, por exemplo. Estive em
Fortaleza (CE) para ver as jangadas de pescadores. Não sei
por quê, mas eles me fascinam
desde criança. Comprei recentemente um pequeno barco de
madeira. Não me interesso pela
regata, pela competição esportiva, e sim pelo conhecimento,
pela experiência humana. Uso
o barco no delta do rio da Prata.
Planejo um dia chegar até o Paraguai (risos).
FOLHA - A água exerce papel importante em seus dois longas.
MARTEL - Sim. Eu me dei conta
depois, quando terminei os filmes. Não me agrada a idéia de
lago privado embutida em uma
piscina. Mas creio que não tenha uma obsessão com a água.
FOLHA - Seus filmes provocam reações muito diversas.
MARTEL - Não penso nas interpretações que virão, mas acredito que o processo de criação
tenha a ver com isso. Gosto de
percorrer terrenos mais indefinidos, mais ambíguos, e isso
sempre gera maiores possibilidades de interpretação. Não faço isso para que o público se
desconcerte, e sim porque me
parece que por aí se revelam as
coisas. Quando me perguntam
o que quero dizer com meus filmes, digo que não quero dizer
nada. Quero compartilhar com
o espectador um tempo, uma
situação, uma emoção, uma
conversa. Isso é mais importante para mim do que contar
uma história. É o desejo de se
comunicar, que nos move.
FOLHA - O posicionamento de câmera parece representar o olhar de
uma criança curiosa, ainda incapaz
de compreender o que vê.
MARTEL - Isso é consciente. Para mim, essa deve ser a posição
da câmera, sempre. A curiosidade, o assombro, são coisas
que o mundo está perdendo. A
vida urbana, do trabalho, dos
compromissos, faz perder a curiosidade e uma espécie de
atenção muito especial. A posição que uso é a do olhar de
quem está se formando, aprendendo, e não está julgando. Para mim, a câmera precisa estar
sempre no lugar de uma pessoa.
Por isso não uso grua. Não assumi essa postura conscientemente desde o início; me dei
conta disso quando filmava "O
Pântano". Para ser coerente em
todo o filme, precisava manter
a câmera assim.
Texto Anterior: Sessão de "O Ano" em Berlim seduz o júri e a imprensa Próximo Texto: Frases Índice
|