São Paulo, Quarta-feira, 10 de Fevereiro de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"CENTRAL DO BRASIL"/OUTRA VISÃO
Estética ex-FHC

GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS
especial para a Folha

Impressionou-me na Folha, semana retrasada (dia 28 de janeiro), o artigo de Otavio Frias Filho cotejando Glauber Rocha e Walter Salles, o diálogo do morto com o vivo no cinema brasileiro. Não saberia dizer se o morto ouve melhor, mas é impossível esquecer a frase de Auguste Comte (1798-1857) sobre os mortos governando os vivos.
"Cinema Global", eis o título de seu artigo -o que suscita no leitor a dúvida: cinema globalizado ou cinema da Rede Globo? Ou ambos?
A despeito de se gostar ou não do filme, o fato inesquecível é o sucesso de "Central", aqui e no exterior, inclusive a perspectiva de sua premiação. É difícil imaginar qual será a receptividade do filme depois do naufrágio do plano de estabilidade monetária de FHC.
Walter Salles retoma o espírito da Vera Cruz dos anos 50: cinema "roliudiano" nasce in ABC paulista. Os EUA continuam sendo o paradigma. Isso pressupõe que o cinema brasileiro não terá condições de dar certo sem repercutir ou mimetizar o cinema hegemônico no mundo: o americano.
Assim, uma alternativa fora desse esquema subalterno (estamos na ante-sala da "sociologia da dependência" de FHC) significa irrealismo patológico, ou seja: dar murro em ponta de faca. É exclusivamente sob esse ângulo do beco sem saída que devemos entender a esperança de que "Central do Brasil" representa o "nascimento" do cinema brasileiro.
Essa é a verdade do século 20: quem domina o cinema domina o mundo. Reflexo metonímico do processo civilizatório brasileiro, o cinema entre nós estaria fadado ao reboque que vingou mundialmente, sem cogitar de algo que fosse autônomo, original, particular, com luz e som próprios.
Essa resignação periférica -ou esse desejo de fazer alguma coisa para os estrangeiros ricos-, na qual os brasileiros pobres gostam de se mirar, não é um problema que diz respeito apenas ao cinema, mas sim é um problema geral da nossa cultura colonizada, macumba para turista: compramos o velho e vendemos o novo.
O cineasta que se rebelou contra esse neurótico complexo de inferioridade colonial foi Glauber Rocha, hoje considerado no entanto mais como um profeta.
É sem dúvida por causa disso que o diretor Walter Salles pulou a estética da fome glauberiana (1965), aproximando-se da Vera Cruz, motivo pelo qual o Palácio do Planalto se reconhece por meio da ideologia tucana da "competitividade": "Central" é um produto cultural bem-sucedido na maré globalizada do capitalismo.
Curiosamente, o cinema de Glauber é tido como pobre, poético, discursivo e nacionalista, de modo que o filme de ação de Salles talvez não alcançasse o sucesso se porventura tivesse alguma coisa a ver com Glauber Rocha, cineasta nacionalista impregnado de sentimento telúrico, mas que recebe influência das idéias européias.
"Central do Brasil", no qual só tem gente pobre e humilde, difere substancialmente da ênfase cosmológica dada à luz, à natureza, à energia em "A Idade da Terra", o filme que começa o cinema novo de trás para a frente, posto que hoje a herança ideológica do cinema novo está repartida em manifestações conservadoras, reacionárias e quiçá fascistas.
"A Idade da Terra" é um filme no qual está ausente a moeda e abolida a noção de sofrimento individual.
"Central" é o contrário: a visibilidade é da moeda real, e não da terra. O drama do menino órfão torna-se um drama de qualquer lugar, despertando comoção e lágrimas no espectador, mas nenhum sentimento de indignação.
Trata-se de um filme conformista: não se cogita em nenhum momento colocar o menino na escola (por que não colocá-lo no Ciep?); o que se ensina é apenas lidar com o dinheiro. Por pouco o destino do pobre menino não teria sido presenteado com uma opípara e suculenta "cesta básica", oferecida pelas mãos generosas do ministro Francisco Weffort.
Em "Central", a cor amarelada em excesso na fotografia contribui para dificultar a percepção física do território: é o cenário pós-moderno de um Brasil sem território, onde o dinheiro cosmopolita é mostrado de modo frontal e chapado. Nesse sentido, cabe interpretá-lo como um ícone publicitário da era FHC. Evidentemente, se tivermos como critério axiológico o cinema nacional, e não o "cinema global", seria melhor assistirmos a um documentário sobre o Banco Central.


Texto Anterior: Conheça os adversários
Próximo Texto: A Vida é Bela/Outra visão: Benigni é animador da vez
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.