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"CENTRAL DO BRASIL"/OUTRA VISÃO
Estética ex-FHC
GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS
especial para a Folha
Impressionou-me na Folha,
semana retrasada (dia 28 de janeiro), o artigo de Otavio Frias
Filho cotejando Glauber Rocha
e Walter Salles, o diálogo do
morto com o vivo no cinema
brasileiro. Não saberia dizer se
o morto ouve melhor, mas é
impossível esquecer a frase de
Auguste Comte (1798-1857) sobre os mortos governando os
vivos.
"Cinema Global", eis o título
de seu artigo -o que suscita no
leitor a dúvida: cinema globalizado ou cinema da Rede Globo? Ou ambos?
A despeito de se gostar ou
não do filme, o fato inesquecível é o sucesso de "Central",
aqui e no exterior, inclusive a
perspectiva de sua premiação.
É difícil imaginar qual será a receptividade do filme depois do
naufrágio do plano de estabilidade monetária de FHC.
Walter Salles retoma o espírito da Vera Cruz dos anos 50: cinema "roliudiano" nasce in
ABC paulista. Os EUA continuam sendo o paradigma. Isso
pressupõe que o cinema brasileiro não terá condições de dar
certo sem repercutir ou mimetizar o cinema hegemônico no
mundo: o americano.
Assim, uma alternativa fora
desse esquema subalterno (estamos na ante-sala da "sociologia da dependência" de FHC)
significa irrealismo patológico,
ou seja: dar murro em ponta de
faca. É exclusivamente sob esse
ângulo do beco sem saída que
devemos entender a esperança
de que "Central do Brasil" representa o "nascimento" do cinema brasileiro.
Essa é a verdade do século 20:
quem domina o cinema domina o mundo. Reflexo metonímico do processo civilizatório
brasileiro, o cinema entre nós
estaria fadado ao reboque que
vingou mundialmente, sem cogitar de algo que fosse autônomo, original, particular, com
luz e som próprios.
Essa resignação periférica
-ou esse desejo de fazer alguma coisa para os estrangeiros
ricos-, na qual os brasileiros
pobres gostam de se mirar, não
é um problema que diz respeito
apenas ao cinema, mas sim é
um problema geral da nossa
cultura colonizada, macumba
para turista: compramos o velho e vendemos o novo.
O cineasta que se rebelou
contra esse neurótico complexo de inferioridade colonial foi
Glauber Rocha, hoje considerado no entanto mais como um
profeta.
É sem dúvida por causa disso
que o diretor Walter Salles pulou a estética da fome glauberiana (1965), aproximando-se
da Vera Cruz, motivo pelo qual
o Palácio do Planalto se reconhece por meio da ideologia tucana da "competitividade":
"Central" é um produto cultural bem-sucedido na maré globalizada do capitalismo.
Curiosamente, o cinema de
Glauber é tido como pobre,
poético, discursivo e nacionalista, de modo que o filme de
ação de Salles talvez não alcançasse o sucesso se porventura
tivesse alguma coisa a ver com
Glauber Rocha, cineasta nacionalista impregnado de sentimento telúrico, mas que recebe
influência das idéias européias.
"Central do Brasil", no qual
só tem gente pobre e humilde,
difere substancialmente da ênfase cosmológica dada à luz, à
natureza, à energia em "A Idade da Terra", o filme que começa o cinema novo de trás para a
frente, posto que hoje a herança ideológica do cinema novo
está repartida em manifestações conservadoras, reacionárias e quiçá fascistas.
"A Idade da Terra" é um filme
no qual está ausente a moeda e
abolida a noção de sofrimento
individual.
"Central" é o contrário: a visibilidade é da moeda real, e não
da terra. O drama do menino
órfão torna-se um drama de
qualquer lugar, despertando
comoção e lágrimas no espectador, mas nenhum sentimento de indignação.
Trata-se de um filme conformista: não se cogita em nenhum momento colocar o menino na escola (por que não colocá-lo no Ciep?); o que se ensina é apenas lidar com o dinheiro. Por pouco o destino do pobre menino não teria sido presenteado com uma opípara e
suculenta "cesta básica", oferecida pelas mãos generosas do
ministro Francisco Weffort.
Em "Central", a cor amarelada em excesso na fotografia
contribui para dificultar a percepção física do território: é o
cenário pós-moderno de um
Brasil sem território, onde o dinheiro cosmopolita é mostrado
de modo frontal e chapado.
Nesse sentido, cabe interpretá-lo como um ícone publicitário
da era FHC. Evidentemente, se
tivermos como critério axiológico o cinema nacional, e não o
"cinema global", seria melhor
assistirmos a um documentário sobre o Banco Central.
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