São Paulo, Quarta-feira, 10 de Fevereiro de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"A VIDA É BELA"/OUTRA VISÃO
Benigni é animador da vez

GERALD THOMAS
de Nova York

"A Vida É Bela", de Roberto Benigni, é um desses filmes lindos e emocionantes que aparecem de tempos em tempos e que, de tão corajosos e descompromissados com o engajamento histórico, "político e ideologicamente corretos", deixa seus críticos inteiramente confusos.
Para o desespero do público, a crítica -composta na maioria de sisudos senhores cristãos- embarca num desenfreado festival de caça em busca de explicações, justificativas e comparações literárias, para tentar entender seu enorme sucesso.
Vão buscar em Chaplin, em dom Quixote e, até mesmo, na brilhante "A Lista de Schindler", do norte-americano Steven Spielberg, argumentos que os coloquem "acima" da fantasia do comediante italiano e, portanto, os autorize a assumir a posição careta de poder "corrigir" e diminuir essa pequena obra-prima italiana.
Em vez de, simplesmente, se deixarem levar pela livre fantasia de "A Vida É Bela", esses críticos, obviamente incomodados com a (aparente) alienação de seu personagem principal, acabam enxergando monstros ou descobrindo estratégias macabras na forma "leve" e deliberadamente cômica com que Benigni trata de temas tão "sérios" e "trágicos", como o Holocausto.
Certamente, o Holocausto é o episódio mais trágico deste século. Mas nem por isso o tema precisa ficar circunscrito somente a entediantes teses acadêmicas.
O assunto é de domínio público e, aliás, são os próprios judeus, como Groucho Marx, Paul Celan e, até mais recentemente, Spiegelman, com sua cruel e autodepreciativa história em quadrinhos, "The Mouse", os primeiros a transformar em comédia essa aberração histórica.

Não-judeu
O que irrita e confunde os críticos é que Benigni não é judeu. Mas seu personagem é, e isso é o que importa quando o vemos driblando a história, da mesma maneira com que Tostão driblava os atacantes do time inimigo.
Roberto Benigni tem tanto direito de fazer sua "versão judia" da história, quanto Woody Allen tem de fazer (como fez em "Celebrity") sua "versão cristã".
Substituir a tragédia pela comédia (e vice-versa) não é um privilégio de judeus nem de cristãos, mas um dado concreto e de uso muito frequente na arte de qualquer grande dramaturgo.
É, justamente, a falta de escrúpulos com que esse autor/ diretor manipula tais sentimentos e os coloca a favor de seu argumento que torna "A Vida É Bela" uma utópica e iluminada jornada de um anti-herói durante o período mais escuro e inexplicável de nossa história.
Foi ótimo o enfoque "behind the scenes" que Leon Cakoff deu à Folha na sexta-feira passada.
Só temo que, se analisado por meio do "lobbismo" e da estratégia de marketing de qualquer produtor capitalista, sedento por prêmios e milhares de dólares na bilheteria, nenhum filme lançado no grande circuito internacional consiga se salvar.
Todos acabam sendo vítimas ou cúmplices dessa Hollywood completamente deformada por investimentos e conchavos malignos.
Benigni, um manipulador ou um inocente manipulado por um estúdio maquiavélico? E daí? Se revirmos toda a história da arte, com seus inacabáveis pactos e conchavos, acabaremos questionando se Wagner teria sido Wagner se não tivesse a proteção de Ludwig ou se Mozart teria existido sem a corte austríaca.
Em última análise, vale até perguntar se Hollywood seria Hollywood se o Holocausto não tivesse mandado para cá seus melhores judeus.

Bobos da corte
Mas nada disso importa para os espectadores de "A Vida É Bela".
Sentados em suas poltronas, judeus, cristãos e budistas vão dar um breve passeio cômico às trevas e testemunhar, com as poucas lágrimas românticas que ainda nos restam, que a história realmente não serve para nada e que, perto da virada do terceiro milênio, ela nada mais é do que uma mera vítima de interpretações, uma fantasiosa festa de horrores, animada por seus eventuais bobos da corte.
E, nessa corte de bobos que é Hollywood, é bom que Roberto Benigni seja o bobo da corte da vez.


Texto Anterior: Central do Brasil/Outra Visão: Estética ex-FHC
Próximo Texto: País concorre pela 3ª vez nos 90
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.