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GASTRONOMIA
Pode me passar um bem-casado, por favor?
NINA HORTA
Colunista da Folha
Quem não conhece as mesas de
docinhos de casamento, docinhos
em bandejas, que vão do branco
do açúcar ao marron do chocolate, glaçados, caramelados, em
trouxinhas, medalhões, camafeus? Qual a mulher que já não
deixou a festa emburrada porque
o marido se negou a esperar a sobremesa? Quem não sujou a bolsa
de açúcar roubando docinhos para os que ficaram em casa?
Uma vez fiquei intrigada com
uma tia que, antes de sair para um
casamento, pintava de vermelho a
unha do polegar e do anular. Só.
Envergonhada, explicou. São as
unhas de pegar docinho.
Acreditem. Essas são histórias
que se repetem tal e qual desde
que o açúcar começou a fazer fartura no mundo. A partir do século
16, foi se tornando mais abundante na Europa, ainda que caro. E,
por ser caro, denotava status.
Logo, a sobremesa tornou-se
um novo departamento no qual
podia-se mostrar a amigos nosso
grau de riqueza, bom gosto e conhecimento de novas modas.
Quem se encarregou da doçaria
foram as mulheres, um tanto pelo
açúcar ainda estar ligado à medicina, e à ela, chefe da casa, competia tratar de pequenos males. Outro tanto por ser relativamente caro e perigosa a gaspillage, o desperdício na mão de cozinheiros
homens, pouco acostumados às
delicadezas do açúcar.
E as mulheres não precisavam
enfrentar a cozinha pesada a não
ser na hora das geléias e compotas. Doces e bolos podiam ser feitos em salas só com fogareiro com
a ajuda de criadas e filhas e mulheres da casa.
Os arquitetos, como sempre
muito ligados na arte de bem viver, interessaram-se imediatamente pela sobremesa, a parte final do banquete, e começaram a
planejar ambientes separados nos
castelos, para que a novidade fosse saboreada, principalmente no
verão, em meio à paisagem, campos a perder de vista, vergéis floridos.
Quando visitamos um castelo,
muitas vezes nos intrigamos com
o "banquetting room" onde se comia o "banquetting stuffe". Como
poderiam os banquetes ficar tão
longe da cozinha, da própria casa?
As comidas não esfriavam?
A palavra "banquet" passara a
designar somente a parte da sobremesa, dos doces em geral, vinhos apropriados, águas cheirosas. Ali começava o banquete de
verdade em meio a jogos, danças,
cantos, música.
Às vezes, essas salas eram construídas nos telhados dos castelos,
o que aumentava a beleza da vista.
Subiam-se escadas depois do jantar para se chegar à mesa de especiarias confeitadas, a geléia colorida, a gelatina mais azul, o marzipã
moldado de mil maneiras a ponto
de se confundir com aquilo que
representava.
Os bolos de noivas começaram
a se parecer com bolos de noiva,
cheios de andares, flores, detalhes, pombos e anjos. O repertório dos doces era enorme. Além
deles, frutas da época, frutas importadas, confeitadas, em compotas. Tudo que pudesse ser massacrado, batido, socado, macerado, misturado com frutas e especiarias, cozido, assado, e enfeitado
com açúcar tinha a chance de ser
inventado.
A beleza era importante, o apelo
sensual, tanto na confecção, como
na apreciação, muito óbvio, apesar de enrolado em tafetás e fitas.
Além das especiarias e do próprio açúcar terem fama de afrodisíacos, eram moldados de modo a
produzir gracejos e anedotas.
Hoje, na verdade, não se fazem
mais mesas de doces como antigamente. Chego à conclusão de
que tudo foi culpa do isopor e do
papel de alumínio que, ao servirem de base e substituírem as estruturas feitas com o próprio açúcar, transformaram a mesa de doces num monumento kitsch.
E culpa também do leite condensado que poupa esforço e quedeixa todos os doces com gosto
do mesmo doce.
Ou há que se esquecer desse final climático nos casamentos ou
trazê-lo de volta à moda antiga
com mais graça e sabor, ao tempo
em que ainda havia tempo e que o
açúcar era uma cara novidade.
Vamos caprichar na mesa de
doces e nos enfeites. De vez em
quando, é bom retomar uma tradição para que não se perca nos livros, nas fotos e ilustrações antigas e para recuperarmos um certo
sentido de ritual e de sagrado.
E-mail: ninahort@uol.com.br
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