São Paulo, sexta-feira, 10 de março de 2000


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GASTRONOMIA
Pode me passar um bem-casado, por favor?

NINA HORTA
Colunista da Folha

Quem não conhece as mesas de docinhos de casamento, docinhos em bandejas, que vão do branco do açúcar ao marron do chocolate, glaçados, caramelados, em trouxinhas, medalhões, camafeus? Qual a mulher que já não deixou a festa emburrada porque o marido se negou a esperar a sobremesa? Quem não sujou a bolsa de açúcar roubando docinhos para os que ficaram em casa?
Uma vez fiquei intrigada com uma tia que, antes de sair para um casamento, pintava de vermelho a unha do polegar e do anular. Só. Envergonhada, explicou. São as unhas de pegar docinho.
Acreditem. Essas são histórias que se repetem tal e qual desde que o açúcar começou a fazer fartura no mundo. A partir do século 16, foi se tornando mais abundante na Europa, ainda que caro. E, por ser caro, denotava status.
Logo, a sobremesa tornou-se um novo departamento no qual podia-se mostrar a amigos nosso grau de riqueza, bom gosto e conhecimento de novas modas.
Quem se encarregou da doçaria foram as mulheres, um tanto pelo açúcar ainda estar ligado à medicina, e à ela, chefe da casa, competia tratar de pequenos males. Outro tanto por ser relativamente caro e perigosa a gaspillage, o desperdício na mão de cozinheiros homens, pouco acostumados às delicadezas do açúcar.
E as mulheres não precisavam enfrentar a cozinha pesada a não ser na hora das geléias e compotas. Doces e bolos podiam ser feitos em salas só com fogareiro com a ajuda de criadas e filhas e mulheres da casa.
Os arquitetos, como sempre muito ligados na arte de bem viver, interessaram-se imediatamente pela sobremesa, a parte final do banquete, e começaram a planejar ambientes separados nos castelos, para que a novidade fosse saboreada, principalmente no verão, em meio à paisagem, campos a perder de vista, vergéis floridos.
Quando visitamos um castelo, muitas vezes nos intrigamos com o "banquetting room" onde se comia o "banquetting stuffe". Como poderiam os banquetes ficar tão longe da cozinha, da própria casa? As comidas não esfriavam?
A palavra "banquet" passara a designar somente a parte da sobremesa, dos doces em geral, vinhos apropriados, águas cheirosas. Ali começava o banquete de verdade em meio a jogos, danças, cantos, música.
Às vezes, essas salas eram construídas nos telhados dos castelos, o que aumentava a beleza da vista. Subiam-se escadas depois do jantar para se chegar à mesa de especiarias confeitadas, a geléia colorida, a gelatina mais azul, o marzipã moldado de mil maneiras a ponto de se confundir com aquilo que representava.
Os bolos de noivas começaram a se parecer com bolos de noiva, cheios de andares, flores, detalhes, pombos e anjos. O repertório dos doces era enorme. Além deles, frutas da época, frutas importadas, confeitadas, em compotas. Tudo que pudesse ser massacrado, batido, socado, macerado, misturado com frutas e especiarias, cozido, assado, e enfeitado com açúcar tinha a chance de ser inventado.
A beleza era importante, o apelo sensual, tanto na confecção, como na apreciação, muito óbvio, apesar de enrolado em tafetás e fitas.
Além das especiarias e do próprio açúcar terem fama de afrodisíacos, eram moldados de modo a produzir gracejos e anedotas.
Hoje, na verdade, não se fazem mais mesas de doces como antigamente. Chego à conclusão de que tudo foi culpa do isopor e do papel de alumínio que, ao servirem de base e substituírem as estruturas feitas com o próprio açúcar, transformaram a mesa de doces num monumento kitsch.
E culpa também do leite condensado que poupa esforço e quedeixa todos os doces com gosto do mesmo doce.
Ou há que se esquecer desse final climático nos casamentos ou trazê-lo de volta à moda antiga com mais graça e sabor, ao tempo em que ainda havia tempo e que o açúcar era uma cara novidade.
Vamos caprichar na mesa de doces e nos enfeites. De vez em quando, é bom retomar uma tradição para que não se perca nos livros, nas fotos e ilustrações antigas e para recuperarmos um certo sentido de ritual e de sagrado.

E-mail: ninahort@uol.com.br


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