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CARLOS HEITOR CONY
Balanço que serve para qualquer Carnaval
Durante muito tempo, quando
queria fazer um ato de humildade, pegava uma bula de remédio,
desses mais complicados, e lia tudo, todas as especificações técnico-farmacológicas. Chegava ao
fim sem nada entender e tinha então um excelente motivo para
constatar a minha burrice.
Hoje, não preciso apelar para as
bulas de medicamentos. Todos os
anos, leio com interesse os enredos
das escolas de samba, o significado das alegorias, a mensagem das
fantasias, o recado dos destaques.
Não entendo nada, mas presto
bastante atenção à letra dos sambas-enredos. Um poema de Mallarmé, traduzido em árabe, é
mais compreensível. Aliás, nunca
li nada de Mallarmé em árabe.
Numa sexta-feira em que estava
no Cairo, feriado local, liguei o rádio do carro e ouvi compenetradamente a irradiação de um jogo
de futebol entre duas equipes,
uma do alto Nilo, outra do baixo,
ambas rivais desde a dinastia de
um faraó cujo nome não guardei.
Foi uma das experiências mais
radicais em matéria linguística.
Mesmo assim, às vezes dava para
entender um nome, um Mustafá
que era mencionado com certa
frequência. A partir dele, tentei
descodificar o restante. Mas não
deu. Nem na hora dos gols, quando a exaltação dos locutores chegava a ser apoplética, eu compreendia o que se passava -pensando bem, talvez a partida tivesse terminado num zero-zero e não
tenha havido nenhum gol, mas
momentos excepcionais, por
exemplo, um jogador ter sido devorado por um crocodilo do já citado rio Nilo.
O mesmo acontece com as letras
dos sambas-enredos, que, além de
complicadas, se tornam complicadíssimas com a música, que comprime versos enormes numa só
nota. Ou faz o contrário: encomprida uma única sílaba numa sinfonia inacabada.
Evidente que compreendo os "ô
ôs", que aparecem com mais frequência do que o tal Mustafá do
jogo que ouvi no Cairo. Mas não
me esclarecem muita coisa.
É portanto uma lição de humildade que exerço todos os anos.
Em compensação, muito me alegra quando vejo o Fernando
Pamplona explicar o que é possível. Sou amigo dele, fez a capa do
meu primeiro livro no remotíssimo ano de 1958, ele havia ganho o
prêmio do Salão, foi para a Alemanha, mas já tinha feito sua opção pela cultura popular. Outro
que admiro e adoro é o Haroldo
Costa. É tão articulado quanto o
Pamplona, entende pra burro de
Carnaval e de povo. Mas nem eles
conseguem me aliviar da ignorância na matéria.
Mas um Carnaval não vive apenas de escola de samba. Vive também dos camarotes. E direi mais:
vive em sua plenitude nos camarotes, onde os notáveis se reúnem
para serem vistos entre si e, principalmente, pela rapaziada da mídia.
Houve um ano, não lembro
qual, em que um filósofo marxista
foi entrevistado num desses camarotes, no intervalo entre o desfile do Salgueiro e o da União da
Ilha. Evidente que ele estava gostando. Mas preferia ter ficado em
casa, em companhia de Walter
Benjamin. O repórter perguntou
de que escola ele era.
Ora, se um filósofo marxista, vidrado em Walter Benjamin, vai
parar num camarote da Marquês
de Sapucaí, tudo passa a ser possível, inclusive a presença de gente
menos austera que mal sabe
quem foi o Zé Pereira, tido e havido como um dos fundadores do
Carnaval carioca.
Não me dei ao respeito de saber
quem estava onde. Em linhas gerais, todos parecem estar em todas
as partes. A mesmice dos desfiles e
do Carnaval como um todo ganhou uma dimensão atemporal.
Durante anos editei uma revista
ilustrada que atingia o seu zênite
de vendagem à custa da grande
festa. O segredo do sucesso era a
urgência de colocá-la nas bancas,
antes dos jornais e de qualquer
outra concorrente.
Para apressar o fechamento,
preparava com antecedência um
caderno de 16 páginas com fotos
do Carnaval anterior. Era justamente o caderno central, que
coincidia com o centro da revista
inteira. Depois da capa, era o espaço mais nobre da edição.
Durante uns três ou quatro
anos, eu tinha uma foto tirada pelo finado Gil Pinheiro, era só mudar a legenda. No dia seguinte,
aquela página estava aberta em
todas as bancas da cidade. Nunca
reclamaram que era uma foto
usada e abusada.
Falei acima na legenda. Uma
das artes mais sofisticadas de um
redator que fecha um caderno de
Carnaval é fazer as legendas. Em
geral, escolhe-se a foto pelo visual
da moça, o corpo escultural e suado, o esplendor da carne no triunfo imortal da alegria.
Depois de dez legendas, a inspiração do cara acaba. Mesmo porque o tamanho de uma legenda,
para uma foto do tamanho da página, era invariavelmente de uma
linha datilografada, ou seja, 72
batidas da máquina de escrever.
O jeito era apelar para legendas já
feitas em carnavais passados. Havia uma que fez sucesso e era usada todos os anos: "Não tendo
mais lugar no salão, ela subiu na
mesa e pulou até o sol raiar".
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