São Paulo, sexta-feira, 10 de março de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CARLOS HEITOR CONY
Balanço que serve para qualquer Carnaval

Durante muito tempo, quando queria fazer um ato de humildade, pegava uma bula de remédio, desses mais complicados, e lia tudo, todas as especificações técnico-farmacológicas. Chegava ao fim sem nada entender e tinha então um excelente motivo para constatar a minha burrice.
Hoje, não preciso apelar para as bulas de medicamentos. Todos os anos, leio com interesse os enredos das escolas de samba, o significado das alegorias, a mensagem das fantasias, o recado dos destaques.
Não entendo nada, mas presto bastante atenção à letra dos sambas-enredos. Um poema de Mallarmé, traduzido em árabe, é mais compreensível. Aliás, nunca li nada de Mallarmé em árabe. Numa sexta-feira em que estava no Cairo, feriado local, liguei o rádio do carro e ouvi compenetradamente a irradiação de um jogo de futebol entre duas equipes, uma do alto Nilo, outra do baixo, ambas rivais desde a dinastia de um faraó cujo nome não guardei.
Foi uma das experiências mais radicais em matéria linguística. Mesmo assim, às vezes dava para entender um nome, um Mustafá que era mencionado com certa frequência. A partir dele, tentei descodificar o restante. Mas não deu. Nem na hora dos gols, quando a exaltação dos locutores chegava a ser apoplética, eu compreendia o que se passava -pensando bem, talvez a partida tivesse terminado num zero-zero e não tenha havido nenhum gol, mas momentos excepcionais, por exemplo, um jogador ter sido devorado por um crocodilo do já citado rio Nilo.
O mesmo acontece com as letras dos sambas-enredos, que, além de complicadas, se tornam complicadíssimas com a música, que comprime versos enormes numa só nota. Ou faz o contrário: encomprida uma única sílaba numa sinfonia inacabada.
Evidente que compreendo os "ô ôs", que aparecem com mais frequência do que o tal Mustafá do jogo que ouvi no Cairo. Mas não me esclarecem muita coisa.
É portanto uma lição de humildade que exerço todos os anos. Em compensação, muito me alegra quando vejo o Fernando Pamplona explicar o que é possível. Sou amigo dele, fez a capa do meu primeiro livro no remotíssimo ano de 1958, ele havia ganho o prêmio do Salão, foi para a Alemanha, mas já tinha feito sua opção pela cultura popular. Outro que admiro e adoro é o Haroldo Costa. É tão articulado quanto o Pamplona, entende pra burro de Carnaval e de povo. Mas nem eles conseguem me aliviar da ignorância na matéria.
Mas um Carnaval não vive apenas de escola de samba. Vive também dos camarotes. E direi mais: vive em sua plenitude nos camarotes, onde os notáveis se reúnem para serem vistos entre si e, principalmente, pela rapaziada da mídia.
Houve um ano, não lembro qual, em que um filósofo marxista foi entrevistado num desses camarotes, no intervalo entre o desfile do Salgueiro e o da União da Ilha. Evidente que ele estava gostando. Mas preferia ter ficado em casa, em companhia de Walter Benjamin. O repórter perguntou de que escola ele era.
Ora, se um filósofo marxista, vidrado em Walter Benjamin, vai parar num camarote da Marquês de Sapucaí, tudo passa a ser possível, inclusive a presença de gente menos austera que mal sabe quem foi o Zé Pereira, tido e havido como um dos fundadores do Carnaval carioca.
Não me dei ao respeito de saber quem estava onde. Em linhas gerais, todos parecem estar em todas as partes. A mesmice dos desfiles e do Carnaval como um todo ganhou uma dimensão atemporal. Durante anos editei uma revista ilustrada que atingia o seu zênite de vendagem à custa da grande festa. O segredo do sucesso era a urgência de colocá-la nas bancas, antes dos jornais e de qualquer outra concorrente.
Para apressar o fechamento, preparava com antecedência um caderno de 16 páginas com fotos do Carnaval anterior. Era justamente o caderno central, que coincidia com o centro da revista inteira. Depois da capa, era o espaço mais nobre da edição.
Durante uns três ou quatro anos, eu tinha uma foto tirada pelo finado Gil Pinheiro, era só mudar a legenda. No dia seguinte, aquela página estava aberta em todas as bancas da cidade. Nunca reclamaram que era uma foto usada e abusada.
Falei acima na legenda. Uma das artes mais sofisticadas de um redator que fecha um caderno de Carnaval é fazer as legendas. Em geral, escolhe-se a foto pelo visual da moça, o corpo escultural e suado, o esplendor da carne no triunfo imortal da alegria.
Depois de dez legendas, a inspiração do cara acaba. Mesmo porque o tamanho de uma legenda, para uma foto do tamanho da página, era invariavelmente de uma linha datilografada, ou seja, 72 batidas da máquina de escrever. O jeito era apelar para legendas já feitas em carnavais passados. Havia uma que fez sucesso e era usada todos os anos: "Não tendo mais lugar no salão, ela subiu na mesa e pulou até o sol raiar".


Texto Anterior: Teatro: Estréiam "Mente Capta' e "O Zelador'
Próximo Texto: Ministério reteve verba de filme
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.