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NELSON ASCHER
Dr. Pavlov e os impérios
Cada vez que, sem comida
alguma por perto, um cachorro, ouvindo o som de uma sineta, começa a salivar, reconfirma-se a descoberta do dr. Ivan
Pavlov, o fisiologista russo cujo
experimento demonstrou que se
podia vincular um reflexo decorrente de um estímulo a outro estímulo distinto.
Esse comportamento explica os
resultados de outra experiência.
Basta evocar a palavra "império"
ou um de seus derivados para
que, sem interferência do vírus da
raiva canina (Rhabdovírus),
muita gente comece a espumar.
Se observarmos, por um lado, que
o vocábulo em questão possuía
outrora conotações positivas e,
por outro, que a maioria dos que
apresentam tais sintomas nunca
teve contato direto com a afecção
original, torna-se fácil diagnosticar nessa condição um caso agudo de reflexo condicionado.
Nem mesmo nas raras ocasiões
quando a intensidade do debate
permanece numa faixa tolerável
de decibéis o condicionamento
deixa de se intrometer, pois a expressão acima se associa automaticamente a mais duas : "Roma" e
"decadência ". A rigor, devidamente acompanhadas de sons e
imagens cecil.-b-demilleanos de
imperadores depravados afagando garotos, imperatrizes depravadas afagando garotos e gladiadores depravados afagando garotos
enquanto atiram escravas cristãs
virgens vestidas de togas brancas
aos leões, ambas as palavras aparecem como sinônimos que encapsulam um silogismo: todo império é como Roma; Roma era decadente; logo todo império cairá
(em breve).
Roma era um império imperial
e imperialista que, praticando o
imperialismo, decaiu e caiu: isso é
sabido. A cidade cortada pelo Tibre, que já vinha colecionando
povos e países, mal se tornou um
império (oficialmente em 27
a.C.), entrou em tão vertiginoso
declínio que tombou e desabou
500 efêmeros anos depois (data
convencional : 476). Uma vez, porém, que a metade oriental do
império, com capital em Bizâncio/Constantinopla, continuou,
por assim dizer, imperando até
ser tomada, em 1453, pelos turcos
otomanos, o historiador inglês
Edward Gibbon (1737-94) escreveu sobre esse epílogo de um milênio seu "O Declínio e Queda do
Império Romano", obra que, se
ilustra algo, é o fato de que durabilidade imperial tem mais de regra que de exceção.
Mesmo algumas flores aparentemente frágeis, como o império
colonial lusitano, que só abriu
mão de suas grandes colônias
africanas após a Revolução dos
Cravos (1974), ou o russo que, sucessor do mongol (o maior dos eurasiáticos), não tanto se extinguiu
quanto se metamorfoseou trocando de nomes, mostraram-se capazes durante séculos a fio de resistir
às tendências desagregadoras.
Raramente aconteceu de impérios longevos serem logo substituídos por algo melhor.
Seria possível argumentar que a
instabilidade do mundo contemporâneo e talvez a maioria de
seus conflitos armados não passam de consequência direta da
abolição de unidades supranacionais que, se para seus súditos não
eram o paraíso, haviam conseguido poupá-los do inferno que se
materializou em seguida no seu
vácuo. A recente guerra civil hobbesiana (de todos contra todos)
nos Bálcãs e a interminável crise
no Oriente Médio, que não se limita à segunda Intifada ou à segunda Guerra do Golfo, são respectivamente legados da dissolução da Monarquia Austro-Húngara e do Império Otomano.
As ressonâncias negativas que
envolvem a idéia de império e se
vinculam à vitória, mais no papel
que na prática, de um conceito rival elaborado na Europa, durante os últimos 200 anos, o de Estado-nação, só têm se acentuado
com a sacralização deste. Trocando em miúdos, chegou-se, depois
da Segunda Guerra, a um consenso, de acordo com o qual a maneira natural de organizar os milhares de etnias do planeta, que falam mais de 5.000 línguas e praticam uma infinidade de religiões,
seria dispô-las em duas centenas
de compartimentos chamados
países.
Promoveu-se paralelamente
um conto de fadas, segundo o
qual essas nações se assemelham,
para todos os efeitos, aos indivíduos que vivem não num mundo
caótico e violento, mas numa sociedade normal e democrática. A
equação um-homem-um-voto se
traduziria em um-país-um-voto
e, no reino mágico da lei internacional, os homens já vivem felizes
para sempre. Quem conseguir
quebrar o encanto hipnótico desse modelo de realidade não terá
dificuldade em ver o que ele é:
uma ficção antropomórfica, uma
fábula sem moral nem proveito.
Nem todos os impérios foram
ruins. Nem todos foram bons.
Afirmações assim são ocas, pois
lhes falta o elemento comparativo. Reformulá-las em termos adequados à reflexão implica perguntar: tal ou qual império foi
melhor ou pior do que qual alternativa existente e viável? Mas
nem por isso convém esquecer
que, em virtude de razões às vezes
mais geográficas do que políticas,
tampouco faltaram impérios inviáveis e efêmeros, como o francês
napoleônico ou o nazista alemão,
cujo saldo histórico ficou antes no
vermelho. Essas duas tentativas
imperiais frustradas projetam sobre a Europa uma sombra agourenta nestes dias quando, antes
mesmo de terminada, uma nova
tentativa de reunir o continente
inteiro numa grande unidade política começa a exibir suas contradições.
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