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São Paulo, segunda-feira, 10 de março de 2003

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NELSON ASCHER

Dr. Pavlov e os impérios

Cada vez que, sem comida alguma por perto, um cachorro, ouvindo o som de uma sineta, começa a salivar, reconfirma-se a descoberta do dr. Ivan Pavlov, o fisiologista russo cujo experimento demonstrou que se podia vincular um reflexo decorrente de um estímulo a outro estímulo distinto.
Esse comportamento explica os resultados de outra experiência. Basta evocar a palavra "império" ou um de seus derivados para que, sem interferência do vírus da raiva canina (Rhabdovírus), muita gente comece a espumar. Se observarmos, por um lado, que o vocábulo em questão possuía outrora conotações positivas e, por outro, que a maioria dos que apresentam tais sintomas nunca teve contato direto com a afecção original, torna-se fácil diagnosticar nessa condição um caso agudo de reflexo condicionado.
Nem mesmo nas raras ocasiões quando a intensidade do debate permanece numa faixa tolerável de decibéis o condicionamento deixa de se intrometer, pois a expressão acima se associa automaticamente a mais duas : "Roma" e "decadência ". A rigor, devidamente acompanhadas de sons e imagens cecil.-b-demilleanos de imperadores depravados afagando garotos, imperatrizes depravadas afagando garotos e gladiadores depravados afagando garotos enquanto atiram escravas cristãs virgens vestidas de togas brancas aos leões, ambas as palavras aparecem como sinônimos que encapsulam um silogismo: todo império é como Roma; Roma era decadente; logo todo império cairá (em breve).
Roma era um império imperial e imperialista que, praticando o imperialismo, decaiu e caiu: isso é sabido. A cidade cortada pelo Tibre, que já vinha colecionando povos e países, mal se tornou um império (oficialmente em 27 a.C.), entrou em tão vertiginoso declínio que tombou e desabou 500 efêmeros anos depois (data convencional : 476). Uma vez, porém, que a metade oriental do império, com capital em Bizâncio/Constantinopla, continuou, por assim dizer, imperando até ser tomada, em 1453, pelos turcos otomanos, o historiador inglês Edward Gibbon (1737-94) escreveu sobre esse epílogo de um milênio seu "O Declínio e Queda do Império Romano", obra que, se ilustra algo, é o fato de que durabilidade imperial tem mais de regra que de exceção.
Mesmo algumas flores aparentemente frágeis, como o império colonial lusitano, que só abriu mão de suas grandes colônias africanas após a Revolução dos Cravos (1974), ou o russo que, sucessor do mongol (o maior dos eurasiáticos), não tanto se extinguiu quanto se metamorfoseou trocando de nomes, mostraram-se capazes durante séculos a fio de resistir às tendências desagregadoras. Raramente aconteceu de impérios longevos serem logo substituídos por algo melhor.
Seria possível argumentar que a instabilidade do mundo contemporâneo e talvez a maioria de seus conflitos armados não passam de consequência direta da abolição de unidades supranacionais que, se para seus súditos não eram o paraíso, haviam conseguido poupá-los do inferno que se materializou em seguida no seu vácuo. A recente guerra civil hobbesiana (de todos contra todos) nos Bálcãs e a interminável crise no Oriente Médio, que não se limita à segunda Intifada ou à segunda Guerra do Golfo, são respectivamente legados da dissolução da Monarquia Austro-Húngara e do Império Otomano.
As ressonâncias negativas que envolvem a idéia de império e se vinculam à vitória, mais no papel que na prática, de um conceito rival elaborado na Europa, durante os últimos 200 anos, o de Estado-nação, só têm se acentuado com a sacralização deste. Trocando em miúdos, chegou-se, depois da Segunda Guerra, a um consenso, de acordo com o qual a maneira natural de organizar os milhares de etnias do planeta, que falam mais de 5.000 línguas e praticam uma infinidade de religiões, seria dispô-las em duas centenas de compartimentos chamados países.
Promoveu-se paralelamente um conto de fadas, segundo o qual essas nações se assemelham, para todos os efeitos, aos indivíduos que vivem não num mundo caótico e violento, mas numa sociedade normal e democrática. A equação um-homem-um-voto se traduziria em um-país-um-voto e, no reino mágico da lei internacional, os homens já vivem felizes para sempre. Quem conseguir quebrar o encanto hipnótico desse modelo de realidade não terá dificuldade em ver o que ele é: uma ficção antropomórfica, uma fábula sem moral nem proveito.
Nem todos os impérios foram ruins. Nem todos foram bons. Afirmações assim são ocas, pois lhes falta o elemento comparativo. Reformulá-las em termos adequados à reflexão implica perguntar: tal ou qual império foi melhor ou pior do que qual alternativa existente e viável? Mas nem por isso convém esquecer que, em virtude de razões às vezes mais geográficas do que políticas, tampouco faltaram impérios inviáveis e efêmeros, como o francês napoleônico ou o nazista alemão, cujo saldo histórico ficou antes no vermelho. Essas duas tentativas imperiais frustradas projetam sobre a Europa uma sombra agourenta nestes dias quando, antes mesmo de terminada, uma nova tentativa de reunir o continente inteiro numa grande unidade política começa a exibir suas contradições.



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