São Paulo, sábado, 10 de março de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MANUEL DA COSTA PINTO

Arte de transfigurar as circunstâncias

Roubo de máquina fotográfica ocorrido em Salvador inspira "Drão de Roma", poema do recifense Diógenes Moura

"DRÃO DE ROMA" (Dezembro Caiu)", de Diógenes Moura, pertence ao gênero da "poesia de circunstância". Sua redação foi deflagrada por um episódio ocorrido em Salvador: cercado por um bando numa rua do Pelourinho, ele teve roubada a máquina fotográfica com a qual registrara a procissão de Santa Bárbara.
Escrito sob o signo desse seqüestro da memória, o poema se transformou numa seqüência narrativa, com personagens das ruas de Salvador e figuras ficcionais. Entretanto, seu trabalho de reinvenção da cena traumática é tão elaborado que aplica-se a "Drão de Roma", o comentário que Drummond escreveu a respeito do subtítulo "Versos de Circunstância", dado por Manuel Bandeira ao livro "Mafuá do Malungo":
"Mas que é circunstância, neste particular de versos? Se se incorpora à poesia, deixa de ser circunstância.
Arte de transfigurar as circunstâncias, poderíamos rotular a poesia". Isto posto, é preciso dizer que o conhecimento das circunstâncias em que Moura escreveu seu poema só enriquece a leitura. E, pela mesma razão, o livro não começa no primeiro verso, mas um pouco antes, no prefácio "Abismo como Água Embrulhada", que explica o "leitmotiv", o tema que retornará obsessivamente, com pequenas modulações, como as imagens de um pesadelo: "Eram seis ou cinco ou sete/ ou oito deles/ rajados de ódio vingança desejo (...) Eram seis ou oito ou sete deles/ todos azulados/ naquele terreiro-gemido/ adormecendo na mitra/ bem assombrada".
Nessa batida seca, referências religiosas parecem eternizar a ação dos criminosos que percorrem as ladeiras de Salvador, semideuses de pé encardido que rolam "ruína abaixo" repetindo: "me dê o que é teu".
Curador de fotografia na Pinacoteca do Estado de São Paulo, o escritor recifense incluiu em "Drão de Roma" imagens que dialogam com os versos: detalhes da Bahia barroca e duas fotos de Pierre Verger que mostram um homem numa esquina dos anos 40, cena pacífica contrastando com a terra em transe da cidade atual -como na passagem em que uma menina de rua foge da polícia: "Primeiro ela gritou, bem fininha,/ quase nua, o saco de cola na mão./ Descalça, tudo achenfrado na cabeça./ Corria e gritava,/ entre a Igreja e o outro lado,/ onde estava o homem da fotografia,/ parado,/ cortando o número seis pela metade./
Gritava mandando o iliban profanar o idi./ E corria, bem fininha:/ Drão de pedra rachada./ Entre a vida, a morte, o nada."
Gírias e expressões afro-brasileiras mascaram o xingamento em que "iliban" é "soldado" e "idi" é "cu" (a pedido deste colunista, o autor forneceu um glossário que deveria ser incorporado à edição, pois tornaria mais compreensíveis certas passagens). O que o livro não mascara, todavia, são as fissuras na fachada ("drão") dos edifícios, a fisionomia cindida da Roma negra.


DRÃO DE ROMA (DEZEMBRO CAIU)     
Autor: Diógenes Moura
Editora: Fundação Casa de Jorge Amado
Quanto: R$ 20 (52 págs.)
Lançamento: hoje, às 11h, na Pinacoteca (pça. da Luz, 2, tel. 0/xx/11/ 3229-9844)


Texto Anterior: Mônica Bergamo
Próximo Texto: Visuias: MIS abre hoje exposição com nova ilustração infantil alemã
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.