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MANUEL DA COSTA PINTO
Arte de transfigurar as circunstâncias
Roubo de máquina fotográfica ocorrido em Salvador inspira "Drão de Roma", poema do
recifense Diógenes Moura
"DRÃO DE ROMA" (Dezembro Caiu)", de Diógenes
Moura, pertence ao gênero da "poesia de circunstância".
Sua redação foi deflagrada por um
episódio ocorrido em Salvador: cercado por um bando numa rua do Pelourinho, ele teve roubada a máquina fotográfica com a qual registrara
a procissão de Santa Bárbara.
Escrito sob o signo desse seqüestro da memória, o poema se transformou numa seqüência narrativa,
com personagens das ruas de Salvador e figuras ficcionais. Entretanto,
seu trabalho de reinvenção da cena
traumática é tão elaborado que aplica-se a "Drão de Roma", o comentário que Drummond escreveu a respeito do subtítulo "Versos de Circunstância", dado por Manuel Bandeira ao livro "Mafuá do Malungo":
"Mas que é circunstância, neste particular de versos? Se se incorpora à
poesia, deixa de ser circunstância.
Arte de transfigurar as circunstâncias, poderíamos rotular a poesia".
Isto posto, é preciso dizer que o
conhecimento das circunstâncias
em que Moura escreveu seu poema
só enriquece a leitura. E, pela mesma razão, o livro não começa no primeiro verso, mas um pouco antes,
no prefácio "Abismo como Água
Embrulhada", que explica o "leitmotiv", o tema que retornará obsessivamente, com pequenas modulações, como as imagens de um pesadelo: "Eram seis ou cinco ou sete/ ou
oito deles/ rajados de ódio vingança
desejo (...) Eram seis ou oito ou sete
deles/ todos azulados/ naquele terreiro-gemido/ adormecendo na mitra/ bem assombrada".
Nessa batida seca, referências religiosas parecem eternizar a ação dos
criminosos que percorrem as ladeiras de Salvador, semideuses de pé
encardido que rolam "ruína abaixo"
repetindo: "me dê o que é teu".
Curador de fotografia na Pinacoteca do Estado de São Paulo, o escritor recifense incluiu em "Drão de
Roma" imagens que dialogam com
os versos: detalhes da Bahia barroca
e duas fotos de Pierre Verger que
mostram um homem numa esquina
dos anos 40, cena pacífica contrastando com a terra em transe da cidade atual -como na passagem em
que uma menina de rua foge da polícia: "Primeiro ela gritou, bem fininha,/ quase nua, o saco de cola na
mão./ Descalça, tudo achenfrado na
cabeça./ Corria e gritava,/ entre a
Igreja e o outro lado,/ onde estava o
homem da fotografia,/ parado,/ cortando o número seis pela metade./
Gritava mandando o iliban profanar
o idi./ E corria, bem fininha:/ Drão
de pedra rachada./ Entre a vida, a
morte, o nada."
Gírias e expressões afro-brasileiras mascaram o xingamento em que
"iliban" é "soldado" e "idi" é "cu" (a
pedido deste colunista, o autor forneceu um glossário que deveria ser
incorporado à edição, pois tornaria
mais compreensíveis certas passagens). O que o livro não mascara, todavia, são as fissuras na fachada
("drão") dos edifícios, a fisionomia
cindida da Roma negra.
DRÃO DE ROMA (DEZEMBRO CAIU)
Autor: Diógenes Moura
Editora: Fundação Casa de Jorge Amado
Quanto: R$ 20 (52 págs.)
Lançamento: hoje, às 11h, na Pinacoteca (pça. da Luz, 2, tel. 0/xx/11/ 3229-9844)
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