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NELSON ASCHER
O fim dos cem anos de solidão
Sensação sul-americana de isolamento dos eventos sangrentos acabou em 1994 com ataque em Buenos Aires
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OS SUL-AMERICANOS têm há
muito tempo a impressão de
que a distância geográfica os
isola dos eventos sangrentos que se
desenrolam no resto do mundo. O
século 20, cujas duas guerras mundiais só chegaram a nossas praias
enquanto ecos abafados, ajudou a
arraigar essa sensação de segurança.
Se o sistema internacional intervinha no subcontinente, era por meio
de oscilações e crises econômicas.
Tal tranqüilidade se encerrou,
sem que muitos o notassem, quando
um dos lados do conflito do Oriente
Médio, perpetrando um atentado
terrorista nestas vizinhanças, violou
brutalmente nossa neutralidade.
Foi no dia 18 de julho de 1994,
quando, ao que tudo indica, agentes
iranianos e do Hizbollah, com o
apoio de aliados locais, destruíram, à
bomba, a sede da Amia (Asociación
Mutual Israelita Argentina) em
Buenos Aires, matando 85 cidadãos
argentinos e ferindo ou mutilando
centenas.
A partir daquela data a América do
Sul ingressou plenamente na atual
crise do sistema internacional, primeiro como palco e, cada vez mais,
como ator. Trata-se da crise da ordem que vinha se implantando no
planeta desde a paz da Westfália
que, em 1648, marcara o fim do pior
conflito europeu antes do século 20,
a Guerra dos 30 Anos. Os pressupostos de então apontavam para um
modo de organizar as populações
em geral que lhes assegurasse as melhores (embora não perfeitas) possibilidades de paz, e seus pilares eram estados nacionais responsáveis pelo
monopólio da violência.
O sistema em questão funcionou
melhor em alguns locais, menos
idealmente em outros. Curiosamente, a América do Sul talvez tenha sido sua grande história de sucesso. Seja como for, quando criadas, tanto a Liga das Nações como a
ONU, não visavam a suplantar esse
estado de coisas, mas somente a
aperfeiçoá-lo, gerando mecanismos
que regulassem as disputas e conflitos entre países membros. Aos poucos, porém, a ONU, a União Européia, bem como organizações opacas como as ONGs, começaram a intervir num sem-número de assuntos que não lhes diziam respeito,
erodindo a soberania das nações e
comprometendo fatalmente a própria neutralidade.
Hoje em dia, o Estado-nação, que
as organizações internacionais não
têm nem condições nem legitimidade para substituir, e que tampouco
podem ser trocados por formas arcaicas como as tribos ou confederações tribais, está sob ataque em duas
frentes, a supra e a subnacional.
A supranacional é, obviamente, a
globalização econômica que, por sua
amplitude e extensão, está fora do
controle de qualquer país individual. A subnacional, por seu turno, é
representada por separatismos, exclusivismos e supremacismos de todo tipo, principalmente étnicos e religiosos, e pela nova mescla de criminalidade e política que, financiada
antes de mais nada pelo tráfico de
drogas, armas e mulheres, vem
criando ao redor do globo nichos independentes se bem que interconectados.
Se os resultados da globalização
foram antes benéficos até o momento, os da ofensiva subnacional têm
sido uniformemente prejudiciais. E
algo que torna esta ainda mais grave
é o fato de ser não raro utilizada por
países agressivos para subverterem
seus rivais. Neste quadro, o recente
episódio protagonizado pelas Farc e
pelos governos da Colômbia, Equador, Venezuela é ilustrativo.
As Farc, que o exército colombiano, com toda a razão, atacou em território fronteiriço equatoriano, são
um grupo narcoguerrilheiro, basicamente de gângsteres que disfarçam,
com sua retórica militante (capaz,
no entanto, de iludir os ingênuos),
objetivos criminosos.
O governo legalmente constituído
da Colômbia, mais do que o direito,
tem o dever de combatê-los. Negociar com eles, por exemplo, a libertação de centenas de reféns, não só
lhes dá uma legitimidade a que não
fazem jus, como os incentiva mesmo
a seqüestrar mais gente em busca de
lucro e concessões.
Como o Equador e a Venezuela os
apóiam, estes países vêm de fato
movendo uma guerra clandestina e
negável ("deniable") contra a Colômbia. Hugo Chávez e Rafael Correa, ao introduzir na região um tipo
de política, um paradigma que prevalece em outras partes, como o
Oriente Médio ou a África, mas sem
o qual poderíamos muito bem passar, não fazem mais que dar continuidade ao trabalho dos terroristas
que destruíram a sede da Amia em
Buenos Aires.
Sua ambição talvez se limite "meramente" à deposição de Álvaro Uribe e à instalação de um "bolivariano" (ou das Farc) em Bogotá. Eles,
porém, com a assustadora simpatia
do governo brasileiro, estão corroendo democracias e propagando o
caos por uma região crescente.
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