São Paulo, segunda-feira, 10 de março de 2008

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NELSON ASCHER

O fim dos cem anos de solidão


Sensação sul-americana de isolamento dos eventos sangrentos acabou em 1994 com ataque em Buenos Aires

OS SUL-AMERICANOS têm há muito tempo a impressão de que a distância geográfica os isola dos eventos sangrentos que se desenrolam no resto do mundo. O século 20, cujas duas guerras mundiais só chegaram a nossas praias enquanto ecos abafados, ajudou a arraigar essa sensação de segurança. Se o sistema internacional intervinha no subcontinente, era por meio de oscilações e crises econômicas.
Tal tranqüilidade se encerrou, sem que muitos o notassem, quando um dos lados do conflito do Oriente Médio, perpetrando um atentado terrorista nestas vizinhanças, violou brutalmente nossa neutralidade.
Foi no dia 18 de julho de 1994, quando, ao que tudo indica, agentes iranianos e do Hizbollah, com o apoio de aliados locais, destruíram, à bomba, a sede da Amia (Asociación Mutual Israelita Argentina) em Buenos Aires, matando 85 cidadãos argentinos e ferindo ou mutilando centenas.
A partir daquela data a América do Sul ingressou plenamente na atual crise do sistema internacional, primeiro como palco e, cada vez mais, como ator. Trata-se da crise da ordem que vinha se implantando no planeta desde a paz da Westfália que, em 1648, marcara o fim do pior conflito europeu antes do século 20, a Guerra dos 30 Anos. Os pressupostos de então apontavam para um modo de organizar as populações em geral que lhes assegurasse as melhores (embora não perfeitas) possibilidades de paz, e seus pilares eram estados nacionais responsáveis pelo monopólio da violência.
O sistema em questão funcionou melhor em alguns locais, menos idealmente em outros. Curiosamente, a América do Sul talvez tenha sido sua grande história de sucesso. Seja como for, quando criadas, tanto a Liga das Nações como a ONU, não visavam a suplantar esse estado de coisas, mas somente a aperfeiçoá-lo, gerando mecanismos que regulassem as disputas e conflitos entre países membros. Aos poucos, porém, a ONU, a União Européia, bem como organizações opacas como as ONGs, começaram a intervir num sem-número de assuntos que não lhes diziam respeito, erodindo a soberania das nações e comprometendo fatalmente a própria neutralidade.
Hoje em dia, o Estado-nação, que as organizações internacionais não têm nem condições nem legitimidade para substituir, e que tampouco podem ser trocados por formas arcaicas como as tribos ou confederações tribais, está sob ataque em duas frentes, a supra e a subnacional.
A supranacional é, obviamente, a globalização econômica que, por sua amplitude e extensão, está fora do controle de qualquer país individual. A subnacional, por seu turno, é representada por separatismos, exclusivismos e supremacismos de todo tipo, principalmente étnicos e religiosos, e pela nova mescla de criminalidade e política que, financiada antes de mais nada pelo tráfico de drogas, armas e mulheres, vem criando ao redor do globo nichos independentes se bem que interconectados.
Se os resultados da globalização foram antes benéficos até o momento, os da ofensiva subnacional têm sido uniformemente prejudiciais. E algo que torna esta ainda mais grave é o fato de ser não raro utilizada por países agressivos para subverterem seus rivais. Neste quadro, o recente episódio protagonizado pelas Farc e pelos governos da Colômbia, Equador, Venezuela é ilustrativo.
As Farc, que o exército colombiano, com toda a razão, atacou em território fronteiriço equatoriano, são um grupo narcoguerrilheiro, basicamente de gângsteres que disfarçam, com sua retórica militante (capaz, no entanto, de iludir os ingênuos), objetivos criminosos.
O governo legalmente constituído da Colômbia, mais do que o direito, tem o dever de combatê-los. Negociar com eles, por exemplo, a libertação de centenas de reféns, não só lhes dá uma legitimidade a que não fazem jus, como os incentiva mesmo a seqüestrar mais gente em busca de lucro e concessões.
Como o Equador e a Venezuela os apóiam, estes países vêm de fato movendo uma guerra clandestina e negável ("deniable") contra a Colômbia. Hugo Chávez e Rafael Correa, ao introduzir na região um tipo de política, um paradigma que prevalece em outras partes, como o Oriente Médio ou a África, mas sem o qual poderíamos muito bem passar, não fazem mais que dar continuidade ao trabalho dos terroristas que destruíram a sede da Amia em Buenos Aires.
Sua ambição talvez se limite "meramente" à deposição de Álvaro Uribe e à instalação de um "bolivariano" (ou das Farc) em Bogotá. Eles, porém, com a assustadora simpatia do governo brasileiro, estão corroendo democracias e propagando o caos por uma região crescente.


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