São Paulo, quinta, 10 de abril de 1997.

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GILBERTO GIL
"Cantiga" ficou perdida por 31 anos

ARMANDO ANTENORE
da Reportagem Local

Em 1966, com apenas 24 anos, o compositor Gilberto Gil gravou uma triste canção de amor que pouquíssimas pessoas escutaram.
Chamava-se "Cantiga". O próprio baiano escrevera a melodia. A letra tinha a assinatura do poeta, jornalista, ator e cineasta piauiense Torquato Neto.
Àquela altura, Gil ainda não lançara nenhum LP -nem criara "Domingo no Parque", a música que o tirou definitivamente do anonimato.
Talvez por isso, "Cantiga" nunca veio a público e acabou sumindo da memória do cantor.
Não consta nem mesmo do livro "Todas as Letras", coletânea que o também jornalista Carlos Rennó organizou no ano passado com as mais de 400 composições de Gil.
Somente agora é que "Cantiga" sai do ostracismo. Depois de procurá-la por quase três meses, a Folha a localizou em São Paulo.
Estava numa fita de rolo guardada pela Arlequim, uma das editoras musicais onde o iniciante Gil costumava registrar canções.
Quando gravou "Cantiga", o compositor -recém-formado em administração de empresas- trabalhava para a Gessy Lever.
O escritório da multinacional ficava na praça da República, centro de São Paulo. E o da Arlequim, logo adiante, na avenida Ipiranga.
"Sempre que Gil aparecia com uma nova canção, tratávamos de gravá-la em minha sala mesmo. Usávamos um gravadorzinho simples e, depois, entregávamos a fita para o maestro encarregado de fazer as partituras -que, às vezes, nem eram publicadas", conta Waldemar Marchetti, 69, dono da editora.
O rolo em que está "Cantiga" abriga mais 17 composições -todas já conhecidas. Há, por exemplo, "Retirante", "Ensaio Geral" e "Beira-Mar" (parceria de Gil com Caetano Veloso).
Há também outras cinco canções em que Torquato Neto figura como co-autor: "Vento de Maio", "Rancho da Boa Vinda", "Zabelê", "Minha Senhora" e "Rancho da Rosa Encarnada" (esta, assinada ainda por Geraldo Vandré).
"Cantiga" é a última música da fita. Como as demais, o cantor a gravou apenas com o violão.
"Enquanto preparava `Todas as Letras', soube da canção. O próprio Gil a citou. O problema é que só se lembrava do título. Saímos atrás de possíveis gravações, mas não descobrimos nada", relata Carlos Rennó.
O organizador do livro ressalta que, em mais de 30 anos de carreira, o compositor esqueceu uma série de músicas inéditas -algumas, possuíam partituras, que desapareceram; outras, nem isso.
"Ainda não desistimos de procurá-las", informa Rennó. "À medida que as encontrarmos, iremos incluí-las nas novas edições de `Todas as Letras'."
Mesmo depois de ouvir "Cantiga" (a Folha lhe mostrou a fita anteontem), Gil não soube explicar como a criou.
"Naquele tempo, trabalhava muito com Torquato Neto. Era meu parceiro mais constante. Tenho certeza de que `Cantiga' não se inspirava em ninguém, não derivava de uma musa específica."
O compositor se recorda, no entanto, de que a cantora Nana Caymmi -sua segunda mulher- "adorava" a música.
"Tanto que, recentemente, conseguiu lembrá-la inteirinha e me disse que a pretende gravar."
O parceiro de Gilberto Gil em "Cantiga" é uma das figuras mais importantes do tropicalismo -o movimento cultural que eclodiu por volta de 1967 e buscava fundir a tradição à modernidade para engendrar "um pop autenticamente brasileiro", tanto na música quanto no cinema, na literatura e nas artes plásticas.
Natural de Teresina, Torquato Neto se formou intelectualmente em Salvador.
Com Gil, escreveu ora canções de amor (quase sempre melancólicas), ora músicas saudosistas, que se apoiavam em reminiscências nordestinas (casos de "Zabelê", "Minha Senhora" e "A Rua").
Também assinou composições politicamente engajadas, como "Louvação".
Foi com a explosão tropicalista, porém, que a dupla atingiu o ápice. Juntos, Gil e Torquato conceberam "Geléia Geral", um dos marcos do movimento.
Sobre o parceiro, o baiano declarou em 1984:
"Ele teorizava bastante, era muito entusiasmado com isso, levava às vias de fato, passou por uma fase de transe profundo com a coisa do tropicalismo. Para mim, aquilo era um mistério, um magnetismo que me atraía, eu orbitava, era satélite. Nunca tinha lido Oswald de Andrade, por exemplo, que Torquato conhecia inteiro."
Em novembro de 1972, às 4h30, logo depois de comemorar o 28º aniversário, o poeta piauiense se suicidou. Trancou-se no banheiro de casa e ligou o gás.
"Estávamos afastados", diz Gilberto Gil. "Enfrentávamos dificuldades de relacionamento por causa de sua enorme instabilidade emocional."
Enquanto inalava o gás que o mataria, o letrista rabiscou um último bilhete, em que mencionava o filho de 2 anos: "Pra mim chega! Vocês aí, peço o favor de não sacudirem demais o Thiago. Ele pode acordar".

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