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GILBERTO GIL
"Cantiga"
ficou perdida
por 31 anos
ARMANDO ANTENORE
da Reportagem Local
Em 1966, com apenas 24 anos, o
compositor Gilberto Gil gravou
uma triste canção de amor que
pouquíssimas pessoas escutaram.
Chamava-se "Cantiga". O próprio baiano escrevera a melodia. A
letra tinha a assinatura do poeta,
jornalista, ator e cineasta piauiense Torquato Neto.
Àquela altura, Gil ainda não lançara nenhum LP -nem criara
"Domingo no Parque", a música
que o tirou definitivamente do
anonimato.
Talvez por isso, "Cantiga" nunca veio a público e acabou sumindo da memória do cantor.
Não consta nem mesmo do livro
"Todas as Letras", coletânea que
o também jornalista Carlos Rennó
organizou no ano passado com as
mais de 400 composições de Gil.
Somente agora é que "Cantiga"
sai do ostracismo. Depois de procurá-la por quase três meses, a Folha a localizou em São Paulo.
Estava numa fita de rolo guardada pela Arlequim, uma das editoras musicais onde o iniciante Gil
costumava registrar canções.
Quando gravou "Cantiga", o
compositor -recém-formado em
administração de empresas- trabalhava para a Gessy Lever.
O escritório da multinacional ficava na praça da República, centro
de São Paulo. E o da Arlequim, logo adiante, na avenida Ipiranga.
"Sempre que Gil aparecia com
uma nova canção, tratávamos de
gravá-la em minha sala mesmo.
Usávamos um gravadorzinho simples e, depois, entregávamos a fita
para o maestro encarregado de fazer as partituras -que, às vezes,
nem eram publicadas", conta
Waldemar Marchetti, 69, dono da
editora.
O rolo em que está "Cantiga"
abriga mais 17 composições -todas já conhecidas. Há, por exemplo, "Retirante", "Ensaio Geral" e "Beira-Mar" (parceria de
Gil com Caetano Veloso).
Há também outras cinco canções
em que Torquato Neto figura como co-autor: "Vento de Maio",
"Rancho da Boa Vinda", "Zabelê", "Minha Senhora" e "Rancho da Rosa Encarnada" (esta, assinada ainda por Geraldo Vandré).
"Cantiga" é a última música da
fita. Como as demais, o cantor a
gravou apenas com o violão.
"Enquanto preparava `Todas as
Letras', soube da canção. O próprio Gil a citou. O problema é que
só se lembrava do título. Saímos
atrás de possíveis gravações, mas
não descobrimos nada", relata
Carlos Rennó.
O organizador do livro ressalta
que, em mais de 30 anos de carreira, o compositor esqueceu uma série de músicas inéditas -algumas,
possuíam partituras, que desapareceram; outras, nem isso.
"Ainda não desistimos de procurá-las", informa Rennó. "À
medida que as encontrarmos, iremos incluí-las nas novas edições
de `Todas as Letras'."
Mesmo depois de ouvir "Cantiga" (a Folha lhe mostrou a fita anteontem), Gil não soube explicar
como a criou.
"Naquele tempo, trabalhava
muito com Torquato Neto. Era
meu parceiro mais constante. Tenho certeza de que `Cantiga' não se
inspirava em ninguém, não derivava de uma musa específica."
O compositor se recorda, no entanto, de que a cantora Nana
Caymmi -sua segunda mulher-
"adorava" a música.
"Tanto que, recentemente, conseguiu lembrá-la inteirinha e me
disse que a pretende gravar."
O parceiro de Gilberto Gil em
"Cantiga" é uma das figuras mais
importantes do tropicalismo -o
movimento cultural que eclodiu
por volta de 1967 e buscava fundir
a tradição à modernidade para engendrar "um pop autenticamente
brasileiro", tanto na música
quanto no cinema, na literatura e
nas artes plásticas.
Natural de Teresina, Torquato
Neto se formou intelectualmente
em Salvador.
Com Gil, escreveu ora canções
de amor (quase sempre melancólicas), ora músicas saudosistas, que
se apoiavam em reminiscências
nordestinas (casos de "Zabelê",
"Minha Senhora" e "A Rua").
Também assinou composições
politicamente engajadas, como
"Louvação".
Foi com a explosão tropicalista,
porém, que a dupla atingiu o ápice.
Juntos, Gil e Torquato conceberam "Geléia Geral", um dos marcos do movimento.
Sobre o parceiro, o baiano declarou em 1984:
"Ele teorizava bastante, era
muito entusiasmado com isso, levava às vias de fato, passou por
uma fase de transe profundo com a
coisa do tropicalismo. Para mim,
aquilo era um mistério, um magnetismo que me atraía, eu orbitava, era satélite. Nunca tinha lido
Oswald de Andrade, por exemplo,
que Torquato conhecia inteiro."
Em novembro de 1972, às 4h30,
logo depois de comemorar o 28º
aniversário, o poeta piauiense se
suicidou. Trancou-se no banheiro
de casa e ligou o gás.
"Estávamos afastados", diz Gilberto Gil. "Enfrentávamos dificuldades de relacionamento por
causa de sua enorme instabilidade
emocional."
Enquanto inalava o gás que o
mataria, o letrista rabiscou um último bilhete, em que mencionava
o filho de 2 anos: "Pra mim chega!
Vocês aí, peço o favor de não sacudirem demais o Thiago. Ele pode
acordar".
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