São Paulo, quarta-feira, 10 de abril de 2002

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MARCELO COELHO

A história do bandido que roubou o filme inteiro

"O Invasor" é Paulo Miklos. Mesmo quem não viu o filme de Beto Brant já terá topado com anúncios e cartazes mostrando a cara feia do rapaz. Miklos faz o papel de Anísio, um matador profissional que, contratado por dois empreiteiros, acaba tomando conta da vida deles.
Termina tomando conta do filme também. Anísio é repulsivo, engraçado e fascinante. O interesse do espectador fraqueja um pouco quando o drama dos empreiteiros corruptos (Alexandre Borges e Marco Ricca) está em primeiro plano. Basta aparecer Anísio que a platéia se agita.
Não que o personagem de Paulo Miklos tenha algo a ver com o tipo clássico do bandido charmoso e rebelde, crítico do "sistema" com pinta de galã. É verdade que Anísio consegue seduzir a adolescente bonitinha e milionária. Mas ele não tem nenhum sex appeal. Sua magreza e seu olhar são os de um asceta, de um fanático, de um alucinado.
Ou de um ET. O "invasor" que se infiltra no meio burguês e acaba por dominá-lo vem, de fato, de um outro mundo, o da periferia de São Paulo. As cenas noturnas em alta velocidade ao som de rap, nas quais se atravessa de carro a cidade inteira, dos bairros ricos aos miseráveis, lembram uma viagem espacial, um filme de ficção científica.
Em outro momento, Paulo Miklos aparece de perfil, inclinado sobre a mesa do empresário: só vemos um olho enorme e a sobrancelha arqueada como numa caricatura de vilão. Lembrava aquele feiticeiro de "Fantasia", de Walt Disney, que surge ameaçando Mickey depois de toda a confusão com as vassouras encantadas.
A figura de Anísio é, evidentemente, mais sinistra do que isso. Se faço associações com ETs e personagens de desenho animado, é porque, de alguma forma, o registro, o estilo de interpretação de Paulo Miklos é, não digo caricato, mas intencionalmente irrealista.
Não, irrealista também não é o termo. Anísio parece real, mas é real como um quadro pop, como uma obra de Andy Warhol; está como que iluminado por uma lâmpada fluorescente.
No filme de Beto Brant, ocorre não apenas uma perigosa mistura entre dois pólos extremos da sociedade mas também uma coexistência entre diversos estilos de atuação. A presença esquizóide de Paulo Miklos convive com o realismo de Alexandre Borges e Marco Ricca, bastante convincentes no papel de empreiteiros.
E há também pessoas que não estão atuando de jeito nenhum: os arquitetos discutindo uma planta, a cabeleireira num salão de periferia e o operário da construção comparecem no filme de modo totalmente mal-ajambrado e corriqueiro, despidos, por assim dizer, de qualquer técnica interpretativa.
A coexistência de estilos heterogêneos não aparece apenas no trabalho dos atores. Do mesmo modo, cenas realistas e diálogos dramáticos se alternam com alguns números musicais e passagens de pura vertigem visual, como parênteses interrompendo o avanço do enredo.
A impressão que se tem, assim, é a de um filme descontínuo, aos pedaços. Mas essa descontinuidade é, ao mesmo tempo, uma das coisas mais interessantes de "O Invasor".
Em tese, o filme trata apenas de explorar a promiscuidade entre o mundo do crime e o dos negócios. Há a ascensão "darwiniana" de Anísio -o bandido da periferia em pouco tempo está à vontade numa casa com piscina- e a decadência da classe alta, cada vez mais metida com drogas e pistoleiros. Resumido a isso, o filme tem muito de moralista. Parece estar dizendo que tudo estaria bem se a classe dominante mantivesse um pouco de compostura. Pode-se especular, entretanto, se não há mais coisas em jogo.
Imaginemos que o ideal, do ponto de vista político, fosse diminuir o abismo entre as classes no país. No mundo real, diz "O Invasor", os extremos só se tocam pelo caminho da criminalidade, das drogas, da corrupção.
Esse risco de "contaminação" entre as classes é, entretanto, negado pela própria linguagem do filme, toda ela em desníveis, intervalos, descompassos. Vazios e obstáculos se interpõem a todo momento no fluxo da narrativa e no jogo entre os atores.
"O Invasor" certamente não escandaliza muito com a história de um sócio mandando assassinar o outro. A grande transgressão do filme, obviamente, é a de mostrar a absoluta cara-de-pau com que um sujeito da periferia passa a mandar nos empresários que o contrataram, além de transar com uma filhinha de papai.
Essa transgressão torna o filme inquietante e engraçado ao mesmo tempo. O medo do público (nem tanto o de ser assaltado, mas o de ser "invadido" pela periferia) é exorcizado pelo histrionismo gélido de Paulo Miklos. Anísio é tão sério que dá vontade de rir.
Por outro lado, os empresários parecem se comportar como uma dupla cômica, de tão atrapalhados que são. Só que o problema deles é sério. Poderíamos considerá-los canalhas da pior espécie, mas isso não ocorre. É como se, no fundo, fossem tão inocentes quanto o aprendiz de feiticeiro.
"O Invasor" resulta, assim, de uma série de desencontros, não sei se intencionais ou não. Há o desencontro entre a falsa inocência dos empreiteiros (representada de forma realista por Alexandre Borges e Marco Ricca) e a real vilania do bandido (representada de forma "irreal" por Paulo Miklos). Há o desencontro entre a tensão narrativa e as constantes interrupções da ação. Ou ainda: entre lição de moral (não se meta com a bandidagem) e denúncia política (empreiteiros e bandidos são a mesma coisa).
São ambiguidades que, a meu ver, não se resolvem, o que termina comprometendo o filme. Quem "conduz" a história é o pistoleiro, mas quem "vive" a história são os empresários. A única maneira de resolver essa ambiguidade seria adotar o ponto de vista de um ou de outro lado da história. Convenhamos que a escolha é difícil. O filme procura ficar neutro. Mas é assim que Anísio termina tomando conta de tudo -e que Paulo Miklos rouba a cena.



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