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MARCELO COELHO
A história do bandido que roubou o filme inteiro
"O Invasor" é Paulo Miklos. Mesmo quem não
viu o filme de Beto Brant já terá
topado com anúncios e cartazes
mostrando a cara feia do rapaz.
Miklos faz o papel de Anísio, um
matador profissional que, contratado por dois empreiteiros, acaba
tomando conta da vida deles.
Termina tomando conta do filme também. Anísio é repulsivo,
engraçado e fascinante. O interesse do espectador fraqueja um
pouco quando o drama dos empreiteiros corruptos (Alexandre
Borges e Marco Ricca) está em
primeiro plano. Basta aparecer
Anísio que a platéia se agita.
Não que o personagem de Paulo
Miklos tenha algo a ver com o tipo clássico do bandido charmoso
e rebelde, crítico do "sistema"
com pinta de galã. É verdade que
Anísio consegue seduzir a adolescente bonitinha e milionária.
Mas ele não tem nenhum sex appeal. Sua magreza e seu olhar são
os de um asceta, de um fanático,
de um alucinado.
Ou de um ET. O "invasor" que
se infiltra no meio burguês e acaba por dominá-lo vem, de fato, de
um outro mundo, o da periferia
de São Paulo. As cenas noturnas
em alta velocidade ao som de rap,
nas quais se atravessa de carro a
cidade inteira, dos bairros ricos
aos miseráveis, lembram uma
viagem espacial, um filme de ficção científica.
Em outro momento, Paulo Miklos aparece de perfil, inclinado
sobre a mesa do empresário: só
vemos um olho enorme e a sobrancelha arqueada como numa
caricatura de vilão. Lembrava
aquele feiticeiro de "Fantasia", de
Walt Disney, que surge ameaçando Mickey depois de toda a confusão com as vassouras encantadas.
A figura de Anísio é, evidentemente, mais sinistra do que isso.
Se faço associações com ETs e personagens de desenho animado, é
porque, de alguma forma, o registro, o estilo de interpretação de
Paulo Miklos é, não digo caricato,
mas intencionalmente irrealista.
Não, irrealista também não é o
termo. Anísio parece real, mas é
real como um quadro pop, como
uma obra de Andy Warhol; está
como que iluminado por uma
lâmpada fluorescente.
No filme de Beto Brant, ocorre
não apenas uma perigosa mistura entre dois pólos extremos da
sociedade mas também uma coexistência entre diversos estilos de
atuação. A presença esquizóide
de Paulo Miklos convive com o
realismo de Alexandre Borges e
Marco Ricca, bastante convincentes no papel de empreiteiros.
E há também pessoas que não
estão atuando de jeito nenhum:
os arquitetos discutindo uma
planta, a cabeleireira num salão
de periferia e o operário da construção comparecem no filme de
modo totalmente mal-ajambrado
e corriqueiro, despidos, por assim
dizer, de qualquer técnica interpretativa.
A coexistência de estilos heterogêneos não aparece apenas no
trabalho dos atores. Do mesmo
modo, cenas realistas e diálogos
dramáticos se alternam com alguns números musicais e passagens de pura vertigem visual, como parênteses interrompendo o
avanço do enredo.
A impressão que se tem, assim, é
a de um filme descontínuo, aos
pedaços. Mas essa descontinuidade é, ao mesmo tempo, uma das
coisas mais interessantes de "O
Invasor".
Em tese, o filme trata apenas de
explorar a promiscuidade entre o
mundo do crime e o dos negócios.
Há a ascensão "darwiniana" de
Anísio -o bandido da periferia
em pouco tempo está à vontade
numa casa com piscina- e a decadência da classe alta, cada vez
mais metida com drogas e pistoleiros. Resumido a isso, o filme
tem muito de moralista. Parece
estar dizendo que tudo estaria
bem se a classe dominante mantivesse um pouco de compostura.
Pode-se especular, entretanto, se
não há mais coisas em jogo.
Imaginemos que o ideal, do
ponto de vista político, fosse diminuir o abismo entre as classes no
país. No mundo real, diz "O Invasor", os extremos só se tocam pelo
caminho da criminalidade, das
drogas, da corrupção.
Esse risco de "contaminação"
entre as classes é, entretanto, negado pela própria linguagem do
filme, toda ela em desníveis, intervalos, descompassos. Vazios e
obstáculos se interpõem a todo
momento no fluxo da narrativa e
no jogo entre os atores.
"O Invasor" certamente não escandaliza muito com a história
de um sócio mandando assassinar o outro. A grande transgressão do filme, obviamente, é a de
mostrar a absoluta cara-de-pau
com que um sujeito da periferia
passa a mandar nos empresários
que o contrataram, além de transar com uma filhinha de papai.
Essa transgressão torna o filme
inquietante e engraçado ao mesmo tempo. O medo do público
(nem tanto o de ser assaltado,
mas o de ser "invadido" pela periferia) é exorcizado pelo histrionismo gélido de Paulo Miklos. Anísio
é tão sério que dá vontade de rir.
Por outro lado, os empresários
parecem se comportar como uma
dupla cômica, de tão atrapalhados que são. Só que o problema
deles é sério. Poderíamos considerá-los canalhas da pior espécie,
mas isso não ocorre. É como se, no
fundo, fossem tão inocentes
quanto o aprendiz de feiticeiro.
"O Invasor" resulta, assim, de
uma série de desencontros, não
sei se intencionais ou não. Há o
desencontro entre a falsa inocência dos empreiteiros (representada de forma realista por Alexandre Borges e Marco Ricca) e a real
vilania do bandido (representada
de forma "irreal" por Paulo Miklos). Há o desencontro entre a
tensão narrativa e as constantes
interrupções da ação. Ou ainda:
entre lição de moral (não se meta
com a bandidagem) e denúncia
política (empreiteiros e bandidos
são a mesma coisa).
São ambiguidades que, a meu
ver, não se resolvem, o que termina comprometendo o filme.
Quem "conduz" a história é o pistoleiro, mas quem "vive" a história são os empresários. A única
maneira de resolver essa ambiguidade seria adotar o ponto de
vista de um ou de outro lado da
história. Convenhamos que a escolha é difícil. O filme procura ficar neutro. Mas é assim que Anísio termina tomando conta de tudo -e que Paulo Miklos rouba a
cena.
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