São Paulo, sexta, 10 de abril de 1998

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Moscou é aqui

VADIM NIKITIN
especial para a Folha

Em 1898, o TAM era uma escola de samba se preparando para o Carnaval do século 20. Eles pretendiam fazer entrar em cena, literalmente, a história -sobretudo a eslava. Para isso, empreenderam pesquisas, excursões dos atores a lugares históricos, compras antropológicas em aldeias, laboratórios no túnel do tempo.
Um trato concreto com as "coisas" do teatro. Cada dobra de roupa, cada sombra de cenário queria ser, não história e, portanto, representação, mas sim novidade, presentificação das coisas e fatos.
Mas isso daria numa escola sem samba, estática, uma espécie de misto ainda frio de Cecil B. de Mille e José de Alencar. Como presentificar também os personagens em meio às coisas e fatos? Eis o samba: a descoberta de Tchecov.
(Que foi difícil: a montagem de "A Gaivota" do teatro Alexandrínski, em 1896, foi um fracasso tão grande que Tchecov quase ia desistindo da carreira. Foi Niemirovich-Danchenko que o estimulou a continuar escrevendo teatro e a não engavetar "A Gaivota". Stanislávski de início não gostou da peça, e foi graças outra vez a Danchenko que o autor do "método" se apaixonou por Tchecov.)
Porque nas peças de Tchecov interessa o que vai por baixo, o que de tão sutil e ao mesmo tempo concreto não cabe na coxia, o que, portanto, está ali, em pleno palco. Em vez de mostrar, sugerir.
Como os narradores de Machado de Assis, o dramaturgo de Tchecov não é confiável: arma um ardil para expectativa do espectador, que se torna assim mais ativo do que nunca, desejoso de "ver" justo na hora em que nem tudo o que é mostrado aparece.
A ação está ali, mas seus porquês driblam a solução fácil e abrem atenções. O suspiro, sem deixar de ser só suspiro, é tempestade.
O TAM vislumbrou com iluminado iluminismo que o fundamental no teatro é o ator -e a educação artística do espectador para fruir desse passarinho com DRT, que tem a obrigação de não ser óbvio nem mal pago.
Aqueles russos do TAM sabiam que não conseguimos "agir" sem recorrer ao repertório troncho de mil chavezinhas prontas de comportamento. Como reconquistar o dom de se comunicar sem mídia, já que justamente nisso está a razão de ser do teatro? A pausa tchecoviana de mil compassos: aprendizagem do verdadeiro grito.
Ou seja, o cosmo do espetáculo se constela em torno do caos do ator. O "método" Stanislávski é o resumo desse caos. De novo, comparece a paixão pela luxuosa humildade das coisas do teatro. Só que agora, o trabalho está em dar gravidade de matéria "construível" à graça de conceitos como alma, emoção, memória, energia.
Por trás da fé cênica, idéia-coisa que o TAM radicalizou, flui um certo materialismo religioso em que não é exagero reconhecer algo típico da tradição utópica russa, algo de uma sóbria bebedeira de acreditar tão firme nas coisas e nos homens a ponto de fabricar com eles um deus. Afinal, foi sobre um esticadíssimo arame entre pós-Dostoiévski e pré-Revolução Russa que caminharam as criações dos anos de ouro do TAM.
E é instigante saber que o "método" tenha se degenerado sob o sol hollywoodiano e florescido outro, mais forte, aqui no Brasil. Que o diga o maravilhoso russo-brasileiro Eugênio Kusnet, que este ano -por amor, não por acaso- também faz 100 anos.


VADIM NIKITIN, 25, filho do ator russo Valentim Gaft, é diretor ("Canção de Cisne") e tradutor ("Tio Vânia") de Anton Tchecov no Brasil



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