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Moscou é aqui
VADIM NIKITIN
especial para a Folha
Em 1898, o TAM era uma escola
de samba se preparando para o
Carnaval do século 20. Eles pretendiam fazer entrar em cena, literalmente, a história -sobretudo a
eslava. Para isso, empreenderam
pesquisas, excursões dos atores a
lugares históricos, compras antropológicas em aldeias, laboratórios
no túnel do tempo.
Um trato concreto com as "coisas" do teatro. Cada dobra de roupa, cada sombra de cenário queria
ser, não história e, portanto, representação, mas sim novidade,
presentificação das coisas e fatos.
Mas isso daria numa escola sem
samba, estática, uma espécie de
misto ainda frio de Cecil B. de Mille e José de Alencar. Como presentificar também os personagens em
meio às coisas e fatos? Eis o samba:
a descoberta de Tchecov.
(Que foi difícil: a montagem de
"A Gaivota" do teatro Alexandrínski, em 1896, foi um fracasso
tão grande que Tchecov quase ia
desistindo da carreira. Foi Niemirovich-Danchenko que o estimulou a continuar escrevendo teatro
e a não engavetar "A Gaivota".
Stanislávski de início não gostou
da peça, e foi graças outra vez a
Danchenko que o autor do "método" se apaixonou por Tchecov.)
Porque nas peças de Tchecov interessa o que vai por baixo, o que
de tão sutil e ao mesmo tempo
concreto não cabe na coxia, o que,
portanto, está ali, em pleno palco.
Em vez de mostrar, sugerir.
Como os narradores de Machado de Assis, o dramaturgo de
Tchecov não é confiável: arma um
ardil para expectativa do espectador, que se torna assim mais ativo
do que nunca, desejoso de "ver"
justo na hora em que nem tudo o
que é mostrado aparece.
A ação está ali, mas seus porquês
driblam a solução fácil e abrem
atenções. O suspiro, sem deixar de
ser só suspiro, é tempestade.
O TAM vislumbrou com iluminado iluminismo que o fundamental no teatro é o ator -e a
educação artística do espectador
para fruir desse passarinho com
DRT, que tem a obrigação de não
ser óbvio nem mal pago.
Aqueles russos do TAM sabiam
que não conseguimos "agir" sem
recorrer ao repertório troncho de
mil chavezinhas prontas de comportamento. Como reconquistar o
dom de se comunicar sem mídia,
já que justamente nisso está a razão de ser do teatro? A pausa tchecoviana de mil compassos: aprendizagem do verdadeiro grito.
Ou seja, o cosmo do espetáculo
se constela em torno do caos do
ator. O "método" Stanislávski é o
resumo desse caos. De novo, comparece a paixão pela luxuosa humildade das coisas do teatro. Só
que agora, o trabalho está em dar
gravidade de matéria "construível" à graça de conceitos como alma, emoção, memória, energia.
Por trás da fé cênica, idéia-coisa
que o TAM radicalizou, flui um
certo materialismo religioso em
que não é exagero reconhecer algo
típico da tradição utópica russa,
algo de uma sóbria bebedeira de
acreditar tão firme nas coisas e nos
homens a ponto de fabricar com
eles um deus. Afinal, foi sobre um
esticadíssimo arame entre
pós-Dostoiévski e pré-Revolução
Russa que caminharam as criações
dos anos de ouro do TAM.
E é instigante saber que o "método" tenha se degenerado sob o sol
hollywoodiano e florescido outro,
mais forte, aqui no Brasil. Que o
diga o maravilhoso russo-brasileiro Eugênio Kusnet, que este ano
-por amor, não por acaso-
também faz 100 anos.
VADIM NIKITIN, 25, filho do ator russo Valentim
Gaft, é diretor ("Canção de Cisne") e tradutor ("Tio
Vânia") de Anton Tchecov no Brasil
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