São Paulo, sexta, 10 de abril de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

FORNADA DO MILÊNIO
Até a crítica ranheta aprendeu a rir de si mesma

GERALD THOMAS
de Nova York
Nova York tem visto um verdadeiro festival de críticas devastadoras nessas últimas semanas. Já se dizia aqui que a crítica não era mais a mesma, que não conseguia mais "derrubar" nenhum espetáculo. Bem, eles - os críticos - voltaram à tona com força total. Mas não sem um certo humor.
Nesse pacato final de milênio, até a crítica ranheta adotou a fórmula humorística, ou melhor, bem-humorada. Derrubando o musical de Paul Simon, "The Capeman", ou detonando a encenação de Bob Wilson da ópera de Wagner, "Lohengrin", no Metropolitan Opera House, ou mesmo metralhando a recente estréia de Quentin Tarantino como ator na peça "Wait until Dark", os críticos também têm aproveitado seus espaços para zombar deles mesmos, questionando a validade da "opinião especializada" nessa era de idéias e associações tão livres, desgovernadas e alienantes.
Os críticos têm se espelhado no exemplo cristalino de David Letterman, ele mesmo, objeto de críticas severas e frequentes nessas últimas duas décadas. Cansado de ser atacado por todos os lados, Letterman resolveu endossar os seus detratores em vez de combatê-los, condecorando-os, dando-lhes medalhas, troféus e lhes oferecendo jantares caríssimos, além de jurar que os consultaria para qualquer eventual quadro novo de seu programa. Encurralados pelo estilo "resguardadamente irônico" de Letterman, os críticos acabaram presos pelo seu próprio ego.
Letterman os convidou para participar dos programas, e o convite - desnecessário dizer - foi prontamente aceito. Eles fariam parte de um quadro em que Letterman - vestido com uma manta de lã em farrapos - subia penosamente uma montanha para consultá-los numa espécie de templo em que habitavam, em comunidade. Chegando lá, eles dariam seus conselhos, pronunciariam seus veredictos e fariam suas recomendações. E assim, com plena consciência do que estavam fazendo, cinco dos mais rabugentos críticos da televisão americana emprestavam suas imagens iradas e suas vozes zangadas e transformavam em positivo aquilo que havia sido visto como macabro por tantas gerações: a crítica negativa.
Os programas foram um sucesso e serviram como uma terapia para ambos os lados. Mais que isso, Letterman conseguiu refletir, melhor que muitos tratados amargos da "avant-garde", as estranhas e macabras armadilhas da opinião especializada, aquela que mobiliza e desmobiliza empreitadas de enorme risco e que pode pulverizar, da noite para o dia, o sonho artístico de inúmeros projetos.
Com a ironia que Deus lhe deu, Letterman se provou um pacifista num dilema que tem durado uma eternidade.
Humor parecido tiveram alguns críticos da imprensa ao atacarem a mais recentemente anunciada "revolução", no Metropolitan Opera House. Essa revolução entre aspas nada mais é do que uma pobre, previsível e pouco criativa estratégia do "Met" de angariar platéias mais jovens, já que as estatísticas mostram que sua abundante lista de assinaturas é constituída de pessoas com mais de 70 anos, prontas para se aposentar do mundo do show business.
Essa última "revolução" trouxe à cidade a lindíssima montagem que Bob Wilson já havia apresentado em Zurique, há um ano e meio, o "Lohengrin", de Richard Wagner. Como a maioria das 180 inovadoras montagens anuais de óperas na Europa, essa encenação de Wilson exige que a platéia assuma riscos e faça associações quase tão aventurosas quanto aquelas feitas pelo próprio diretor.
"Mas não sabemos o suficiente sobre esses personagens", reclama o crítico da revista "The New Yorker". "Para nós, o desempenho gráfico dos cantores dessa montagem foi tão interessante quanto observar um faxineiro no aeroporto, quando o vôo está atrasado", diz o crítico.
Para o crítico, os personagens não passavam de uma "mulher que se movia vagarosamente" ou um "homem pintado de branco que parecia ter alguma importância". O crítico americano traduzia sua frustração perante uma ópera monumental, cujo libreto não faz e nunca fará parte do vernáculo dessa cultura.
Essa é justamente a premissa em que Wilson, um americano convicto, baseou sua interpretação. Na Europa, ela foi ovacionada. Em Nova York, ela enfrentou uma vaia que entrou na história: 16 minutos ininterruptos. Mas Wilson respondeu com humor: "a vaia estava fora do tom".
Tarantino não teve tanto humor ao ser demolido, de modo unânime, pela imprensa nova-iorquina. "Volte a dirigir, mas, por favor, nunca mais pise num palco", escrevia o crítico mais influente da cidade, o do "New York Times". "Sem querer, Tarantino conseguiu fazer uma cagada maior do que em seus filmes", berrava o crítico do "New York Post".
Um outro crítico mais bem-humorado se aventurou a sugerir que Tarantino formasse uma dupla com Paul Simon na próxima empreitada da Broadway, para ver se "a soma de duas nulidades resulta numa tentativa mais feliz de ambos". Apesar das barbaridades e das ofensas inevitáveis, os críticos não perderam o humor a respeito da si mesmos.
Um inconformado Tarantino apareceu, na mesma noite em que as críticas apareceram no jornal, no programa de David Letterman. Ele esbravejou, xingou e ofendeu pessoalmente todos os críticos, até aqueles poucos que haviam sido "a favor" da montagem. Parecendo emprestar cumplicidade, David Letterman, o mágico absoluto da dissimulação, colocou sua mão sobre o ombro de Tarantino e, num gesto de aparente consolo, falou: "Você sabe o que eu aprendi depois de décadas, anos seguidos, meses, dia após dia, de pessoas me dizendo que eu não era bom?".
O olhar inocente de Tarantino estacionou na xícara de café enquanto Letterman se preparava para dar seu desfecho brutal: "Aprendi que realmente não sou tão bom assim".

/ONDEE-mail:
geraldthomas@uol.com.br



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.