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FORNADA DO MILÊNIO
Até a crítica ranheta aprendeu a rir de si mesma
GERALD THOMAS
de Nova York
Nova York tem visto um verdadeiro festival de críticas devastadoras nessas últimas semanas. Já se dizia aqui que a
crítica não era mais a mesma,
que não conseguia mais "derrubar" nenhum espetáculo.
Bem, eles - os críticos - voltaram à tona com força total.
Mas não sem um certo humor.
Nesse pacato final de milênio, até a crítica ranheta adotou a fórmula humorística, ou
melhor, bem-humorada. Derrubando o musical de Paul Simon, "The Capeman", ou detonando a encenação de Bob
Wilson da ópera de Wagner,
"Lohengrin", no Metropolitan
Opera House, ou mesmo metralhando a recente estréia de
Quentin Tarantino como ator
na peça "Wait until Dark", os
críticos também têm aproveitado seus espaços para zombar
deles mesmos, questionando a
validade da "opinião especializada" nessa era de idéias e
associações tão livres, desgovernadas e alienantes.
Os críticos têm se espelhado
no exemplo cristalino de David
Letterman, ele mesmo, objeto
de críticas severas e frequentes
nessas últimas duas décadas.
Cansado de ser atacado por todos os lados, Letterman resolveu endossar os seus detratores
em vez de combatê-los, condecorando-os, dando-lhes medalhas, troféus e lhes oferecendo
jantares caríssimos, além de
jurar que os consultaria para
qualquer eventual quadro novo de seu programa. Encurralados pelo estilo "resguardadamente irônico" de Letterman,
os críticos acabaram presos pelo seu próprio ego.
Letterman os convidou para
participar dos programas, e o
convite - desnecessário dizer
- foi prontamente aceito. Eles
fariam parte de um quadro em
que Letterman - vestido com
uma manta de lã em farrapos
- subia penosamente uma
montanha para consultá-los
numa espécie de templo em
que habitavam, em comunidade. Chegando lá, eles dariam
seus conselhos, pronunciariam
seus veredictos e fariam suas
recomendações. E assim, com
plena consciência do que estavam fazendo, cinco dos mais
rabugentos críticos da televisão americana emprestavam
suas imagens iradas e suas vozes zangadas e transformavam
em positivo aquilo que havia
sido visto como macabro por
tantas gerações: a crítica negativa.
Os programas foram um sucesso e serviram como uma terapia para ambos os lados.
Mais que isso, Letterman conseguiu refletir, melhor que
muitos tratados amargos da
"avant-garde", as estranhas e
macabras armadilhas da opinião especializada, aquela que
mobiliza e desmobiliza empreitadas de enorme risco e
que pode pulverizar, da noite
para o dia, o sonho artístico de
inúmeros projetos.
Com a ironia que Deus lhe
deu, Letterman se provou um
pacifista num dilema que tem
durado uma eternidade.
Humor parecido tiveram alguns críticos da imprensa ao
atacarem a mais recentemente
anunciada "revolução", no
Metropolitan Opera House. Essa revolução entre aspas nada
mais é do que uma pobre, previsível e pouco criativa estratégia do "Met" de angariar platéias mais jovens, já que as estatísticas mostram que sua
abundante lista de assinaturas
é constituída de pessoas com
mais de 70 anos, prontas para
se aposentar do mundo do
show business.
Essa última "revolução"
trouxe à cidade a lindíssima
montagem que Bob Wilson já
havia apresentado em Zurique, há um ano e meio, o "Lohengrin", de Richard Wagner.
Como a maioria das 180 inovadoras montagens anuais de
óperas na Europa, essa encenação de Wilson exige que a
platéia assuma riscos e faça associações quase tão aventurosas quanto aquelas feitas pelo
próprio diretor.
"Mas não sabemos o suficiente sobre esses personagens", reclama o crítico da revista "The New Yorker". "Para
nós, o desempenho gráfico dos
cantores dessa montagem foi
tão interessante quanto observar um faxineiro no aeroporto,
quando o vôo está atrasado",
diz o crítico.
Para o crítico, os personagens não passavam de uma
"mulher que se movia vagarosamente" ou um "homem pintado de branco que parecia ter
alguma importância". O crítico americano traduzia sua
frustração perante uma ópera
monumental, cujo libreto não
faz e nunca fará parte do vernáculo dessa cultura.
Essa é justamente a premissa
em que Wilson, um americano
convicto, baseou sua interpretação. Na Europa, ela foi ovacionada. Em Nova York, ela
enfrentou uma vaia que entrou na história: 16 minutos
ininterruptos. Mas Wilson respondeu com humor: "a vaia estava fora do tom".
Tarantino não teve tanto humor ao ser demolido, de modo
unânime, pela imprensa nova-iorquina. "Volte a dirigir,
mas, por favor, nunca mais pise num palco", escrevia o crítico mais influente da cidade, o
do "New York Times". "Sem
querer, Tarantino conseguiu
fazer uma cagada maior do
que em seus filmes", berrava o
crítico do "New York Post".
Um outro crítico mais
bem-humorado se aventurou a
sugerir que Tarantino formasse uma dupla com Paul Simon
na próxima empreitada da
Broadway, para ver se "a soma
de duas nulidades resulta numa tentativa mais feliz de ambos". Apesar das barbaridades
e das ofensas inevitáveis, os
críticos não perderam o humor
a respeito da si mesmos.
Um inconformado Tarantino apareceu, na mesma noite
em que as críticas apareceram
no jornal, no programa de David Letterman. Ele esbravejou,
xingou e ofendeu pessoalmente
todos os críticos, até aqueles
poucos que haviam sido "a favor" da montagem. Parecendo
emprestar cumplicidade, David Letterman, o mágico absoluto da dissimulação, colocou
sua mão sobre o ombro de Tarantino e, num gesto de aparente consolo, falou: "Você sabe o que eu aprendi depois de
décadas, anos seguidos, meses,
dia após dia, de pessoas me dizendo que eu não era bom?".
O olhar inocente de Tarantino estacionou na xícara de café enquanto Letterman se preparava para dar seu desfecho
brutal: "Aprendi que realmente não sou tão bom assim".
/ONDEE-mail:
geraldthomas@uol.com.br
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