São Paulo, quarta-feira, 10 de maio de 2000


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MARCELO COELHO
"Cronicamente Inviável" traz denúncia moral e desconforto

Garçons jogam restos de comida no lixo. Fim de noite. Dois mendigos aparecem. Não conseguimos ver bem os seus rostos, que se inclinam sobre as latas e logo refocilam nos detritos.
Esta é uma das primeiras cenas do filme "Cronicamente Inviável", de Sérgio Bianchi. O espectador se sente incomodado, claro, e se pergunta se o filme todo seguirá esse tom de denúncia explícita.
Mas aí vem a primeira surpresa: uma voz em "off" começa a criticar a cena. Diz algo como: "Não, isso está muito explícito, vamos refazer". Assistimos então a uma variante do acontecimento -não tão nojenta, mas talvez ainda mais chocante.
O que era puro incômodo físico para o espectador se torna, assim, fonte de um desconforto intelectual: que diabo acontece neste filme, que nega, desfaz e refaz o que acabava de ser apresentado? É esse jogo que torna "Cronicamente Inviável" uma obra tão interessante.
"Interessante" é um adjetivo tímido. O filme é excelente, mas excelente de um jeito que os filmes não costumam ser. Já assisti duas vezes a "Cronicamente Inviável", e ainda me sinto inseguro para analisá-lo.
Melhor dizer o que o filme não é. Vemos uma série de horrores do cotidiano brasileiro -assaltos, miséria, devastação do meio ambiente, violência policial- em curtos quadros que entrelaçam vários personagens. Mas o que se denuncia não é exatamente uma "situação social".
Falar em "situação social" pressupõe que ela possa ser mudada. "Cronicamente Inviável", a partir do próprio título, não parece ter essa esperança. A denúncia do filme é sobretudo moral.
A dondoca atropela um menor de rua. Sai do carro e nem se preocupa em ver se o menino está vivo ou morto: organiza apenas um discurso para dizer que não teve culpa de nada. A cena se repete, com outra dondoca, mais adiante no filme. E quase todos os personagens, na verdade, estão às voltas com o mesmo problema: o de livrar-se de qualquer responsabilidade pelos horrores que acontecem no país.
Crítica à burguesia? Novamente, o filme de Sérgio Bianchi puxa o tapete do espectador. Pois as "classes populares" não inspiram nenhum discurso otimista. O policial, a gerente que teve infância pobre, o líder sem-terra parecem detestar, tanto quanto os ricos, a classe de que se originam. Só parece haver solidariedade na opressão.
Comentando várias cenas, temos a personagem de um antropólogo que viaja pelo Brasil -de Salvador a Rondônia, dali a São Paulo e a Porto Alegre.
Suas frases são de uma total incorreção política. Vendo o Carnaval da Bahia, ele considera que naquele Estado inventaram a mais perfeita forma de dominação: a felicidade. Diz algo como: "Deixem o pessoal na miséria, toquem uma música e logo está todo mundo dançando".
Esses pensamentos "lapidares" surgem a todo momento no filme, oscilando entre o acinte, a constatação, o manifesto político e o xingamento. São tantas as frases desse tipo que terminamos sem saber direito o que pensar.
De certo modo, a violência das frases que aparecem em "Cronicamente Inviável" segue o mesmo padrão das imagens: o filme desorienta o espectador porque não se consegue nunca saber se o que se diz, o que se mostra, é para ser entendido ao pé da letra ou como ironia.
Se fosse ironia, cada barbaridade pronunciada estaria a esconder um outro ponto de vista, o "certo", o das convicções do autor. Mas é como se o filme mostrasse todos os pontos de vista como "errados", sem que o "certo" seja ao menos sugerido. O título de "Cronicamente Inviável" já sugere essa ambiguidade: tem um ar de ser irônico, mas desconfiamos que é isso mesmo o que o autor pensa do Brasil.
Vem daí uma estrutura de documentário, uma frieza, talvez, no registro isolado de cenas e mais cenas aberrantes. Ao mesmo tempo, o filme não é um documentário, não é um puro "registro". É como se tudo ali fosse real, "demasiado real": tão verdadeiro a ponto de ser irreconhecível.
Irreconhecível não é o termo, tampouco. Reconhecemos muito bem o absurdo do país no que vemos na tela. Mas aí está a armadilha mais sutil deste filme: propondo-se como uma espécie de caricatura, tende a suscitar a reação de que, afinal, o diretor está exagerando, as coisas não são bem assim etc.
Dizer isso, entretanto, seria reproduzir exatamente o jogo da má consciência que o filme denuncia o tempo todo. Cada personagem engana os outros e engana a si mesmo; o diretor engana o espectador o tempo todo, mas parece dizer que, se propusesse qualquer "luz no fim do túnel", estaria fazendo mais uma enganação.
Ninguém se salva, nem mesmo o filme... O que o torna brilhante. Do mesmo modo, o enredo de "Cronicamente Inviável" é marcado por assaltos, desastres, ferimentos, contusões: os golpes e contragolpes (na narrativa e no corpo dos personagens) se sucedem. O que equivaleria a dizer, bem brasileiramente, que entre mortos e feridos salvam-se todos.
Esta parece ser, para Sérgio Bianchi, a maior tragédia -e o que torna o país, ao mesmo tempo, um objeto de sarcasmo e compunção.


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