São Paulo, quarta-feira, 10 de maio de 2000


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TEATRO
Grupo de sem-terra realiza documentário que será exibido para o diretor Thomas Vinterberg, de "Festa de Família"
Elvira Alegre/Divulgação
Alex Garcia (espiga na mão) ensaia papel de repórter em milharal do pré-assentamento em Arapongas


"Dogma 95" encontra MST em Londrina


VALMIR SANTOS
ENVIADO ESPECIAL A ARAPONGAS (PR)

Fonte de inspiração para José Saramago, Chico Buarque e Sebastião Salgado, aos poucos o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) cultiva, ele mesmo, a criatividade artística para pôr fim a latifúndios de outra instância: os culturais.
Em Arapongas, município rural a 36 km de Londrina, na região norte do Paraná, um grupo de 31 sem-terra do pré-assentamento Dorcelina Folador (homenagem à prefeita de Mundo Novo, MS, assassinada no ano passado) tomam contato pela primeira vez com a criação em vídeo.
Comandada pela diretora paranaense Berenice Mendes e equipe, a oficina de linguagem audiovisual começou no dia 1º e prossegue até o final do mês, culminando com um documentário sobre a trajetória do pré-assentamento, desde a invasão dos 7.850.000 m2 da então fazenda São Carlos, no início de 99, que seria leiloada pelo Banco do Brasil, até a conquista da regularização junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), em processo a ser concluído em breve.
A oficina é uma das 24 que integram os Projetos de Maio, como o Festival Internacional de Teatro de Londrina (Filo), em sua 33ª edição, batizou o "braço social" da programação de 2000, sob o tema "Ano 0, de Todas as Artes", que prossegue até o próximo mês.
Rodado em formato VHS, com duração prevista de 15 minutos e ainda sem título, o vídeo será praticamente todo realizado pelo grupo de sem-terra. Os integrantes estão conhecendo prática e teoricamente as etapas da criação (do roteiro à interpretação, passando pela operação da câmera, figurinos e produção).
O cronograma previa para ontem à noite a conclusão das filmagens (internas e externas). O documentário será exibido no início de junho, primeiro no pré-assentamento onde foi realizado, depois em Londrina, quando o diretor dinamarquês Thomas Vinterberg ("Festa em Família", 98), do manifesto Dogma 95, estará na cidade para um debate.
O Dogma 95 é um documento assinado por quatro diretores dinamarqueses que pregam mais simplicidade no cinema em oposição aos efeitos hollywoodianos.
Segundo a coordenadora de comunicação do pré-assentamento, Jovana Cestille, 26, que está na equipe de produção do vídeo, o projeto do Filo casa com a perspectiva cultural que o MST vem adotando nos últimos tempos (a entidade lançou no ano passado, por exemplo, o CD "Arte em Movimento", com participação de Chico César e outros artistas).
"A música, a poesia e o teatro, que já se tornaram realidade em muitos assentamentos, são exemplos de que trabalhamos a arte também a favor das nossas raízes camponesas, apagadas pela mídia, que só mostra os conflitos e nunca as nossas conquistas", diz.
Jovana conta que ela e os demais participantes, com idades entre 17 e 33 anos, estão empolgados com o curso. "Mesmo quando ficção, o vídeo retrata um pouco da realidade. É uma arma poderosa."
Sérgio Faria de Sá, 33, deixou seu acampamento no Pontal do Paranapanema (SP) especialmente para frequentar a oficina. "Estamos descobrindo que existem outras culturas que devemos respeitar, não só a moda de viola ou violão, mas também o vídeo, o teatro, o piano, o violino, coisas que estão muito distantes do nosso cotidiano", afirma.
Na semana passada, o grupo de sem-terra foi até o centro de Londrina assistir ao espetáculo de abertura do Filo, "La Pantera Imperial", musical inspirado na obra de Bach e encenado pela Cia. Carles Santos, da Espanha.
A maioria pisava o chão de um teatro pela primeira vez. Boné vermelho com o símbolo do MST, tarja preta no braço em luto pela morte, na véspera, de um sem-terra em conflito com a PM paranaense, eles acompanharam a apresentação compenetrados e não esmoreceram diante dos problemas técnicos que implicaram atraso de cerca de três horas.
Sob a mesma platéia do cine-teatro Ouro Verde funcionou, no início do século, a Cia. de Terras Norte do Paraná, de origem e capital britânico, "que na década de 30 recebeu brasileiros e imigrantes em busca de terra própria e vida nova", como informa a placa de bronze afixada na entrada. "Iniciava aqui a maior colonização de terras do planeta."


O jornalista Valmir Santos viajou a convite da organização do festival

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