São Paulo, sexta-feira, 10 de maio de 2002

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CINEMA/ESTRÉIAS

"ALPHAVILLE" E "O DEMÔNIO DAS 11 HORAS"

Divulgação
Jean-Paul Belmondo em "Demônio das 11 Horas", de Godard, que volta ao cartaz hoje


Cineasta francês faz espectador regredir aos anos 60 em seus filmes

Godard documental faz elogios do amor

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

"Alphaville" e "O Demônio das 11 Horas" (vulgo "Pierrot le Fou") são, ambos, deslavados elogios do amor. São ambos filmes de 1965 e pertencem ao mesmo momento da obra de Jean-Luc Godard.
São, também, diferentes. O primeiro é uma ficção científica que narra a visita do agente Lemmy Caution a um mundo totalitário e sua tentativa de libertar dali a mente e o corpo de Natacha von Braun (Anna Karina). O segundo é um "road movie" sobre um homem que troca seu mundo burguês pelos encantos incertos de Marianne (Anna Karina). No primeiro, o homem liberta a mulher. No segundo, ela é que o liberta.
O que chama a atenção em "Alphaville", quando revisto hoje, é sua distância em relação ao que entendemos por ficção científica. Não há estúdio, foguete ou roupa futurística. A sensação de futuro vem da luz de Raoul Coutard, que transfigura Alphaville-Paris.
O Godard de 1965 acredita no homem, no amor e, sobretudo, na poesia de Paul Eluard. A poesia é o que pode transformar o mundo, torná-lo aceitável. Ela é, no mais, um correlato do amor, e este é capaz de aniquilar o pesadelo totalitário, dando sentido à vida.
Parece um pouco J.G. de Araujo Jorge -poeta em outros tempos tão popular quanto Paulo Coelho hoje. E até seria, tal o derramamento romântico, não fosse a secura do preto-e-branco, o combate entre Lemmy Caution e o supercomputador Alpha-60, a dinâmica de dois mundos regidos pelo livro: o dos "planetas exteriores", orientado pela possibilidade de interpretação infinita dos textos, o de Alphaville pela interpretação unívoca da bíblia de Alpha-60.
"Pierrot le Fou" não é menos romântico nem menos libertário do que "Alphaville". Aqui vigora o colorido e, com ele, a idéia de expansão, bem como o humor -mas a poesia não está ausente.
É logo no início, no entanto, que Godard diz a que vem. Com um livro de Elie Faure nas mãos, Pierrot fala de Velasquez, de um momento em que Velasquez já não se interessava em pintar as coisas, mas entre as coisas.
"Entre" é uma palavra-chave no cinema godardiano. Cada plano, cada corte, nos lembram de que lhe interessa o que está entre as coisas. Com "Pierrot" estamos num Godard mais típico: o interesse em contar uma história inexiste. Ela é apenas um fio a partir do qual Godard vai pilhando as coisas do mundo, aqui e ali.
Em "Pierrot" ou "Alphaville", apesar de suas diferenças, o espectador experimentará a sensação de regredir a 1965, e esse não é um sentimento extemporâneo. Godard não é um documentarista, mas é o mais documental dos cineastas. O seu tempo, aquilo que o cerca, as idéias, ilusões ou inquietações do momento estão gravadas em cada fotograma, misturadas às suas reflexões, à maneira de ver o mundo.
É em "Pierrot" que Godard nos presenteia com a magnífica definição de cinema de Samuel Fuller (em pessoa), que transcrevo de memória: cinema é amor, ódio, sangue, em uma palavra: emoção. É um campo de batalha.
Campo de batalha. E não distração para os olhos. Campo de batalha em que nós, espectadores, temos de lutar em corpo-a-corpo com as imagens e as idéias que nos trazem. Não casa de repouso.
Godard está vivo e pulsante a cada cena que filma e exige que também estejamos vivos e atentos. Não para segui-lo cegamente, mas sim para ver o que há nessas imagens que estão entre nós e a tela, elas também muito vivas.


Alphaville Alphaville     
Direção: Jean-Luc Godard
Produção: França/Itália, 1965
Com: Eddie Constantine, Anna Karina
Quando: a partir de hoje no Top Cine



O Demônio das 11 Horas
Pierrot le Fou     
Direção: Jean-Luc Godard
Produção: França/Itália, 1965
Com: Jean-Paul Belmondo, Anna Karina
Quando: a partir de hoje no Top Cine



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