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São Paulo, sábado, 10 de maio de 2003

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"DIVERTIMENTO"

Cortázar caminha para o fantástico

FRANCESCA ANGIOLILLO
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Em música, chama-se "divertimento" a uma peça leve e lúdica. O termo indica, ainda, a passagem, numa mesma obra, de um tom para o outro.
Considerando que o argentino Julio Cortázar (1914-1984) era um melômano a ponto de dizer que teria preferido ser músico a escritor, se tivesse talento para tanto, não é descabido pensar que houvesse considerado esses dois significados ao intitular "Divertimento" um curto romance, escrito durante o Carnaval de 1949. Como todas as suas investidas no gênero até "Os Prêmios" (1960), "Divertimento" permaneceu na gaveta, de onde só saiu em 1986 e, até agora, era inédito no Brasil.
A primeira das acepções resume o que o leitor encontra de forma imediata: um livro ligeiro, pontuado de bom humor e sarcasmo, que assume seu caráter de jogo já nas primeiras palavras do personagem narrador, Inseto -convenientemente, um literato.
"Falo de um tempo distante e já cinerário, quando éramos vários e vivíamos o que digo aqui, um pouco para os outros e quase tudo para os meus feriados, que preencho infatigável com palavras. A laranja se abre em gomos translúcidos que ergo ao sol de uma lâmpada para observar o glóbulo sombrio das sementes por entre a linfa. De um dos gomos saem os Vigil, agora estou com eles e os outros na casa de Villa del Parque onde brincávamos de viver."
Os Vigil, apelido dado a um dos dois casais de irmãos com quem Inseto convive, são Jorge e Marta -ele, poeta que adota a escrita automática em escritos que ela se empenha em taquigrafar. O outro duo é composto de Renato e Susana -ele, pintor, surrealista, enquanto ela mantém a casa em silencioso funcionamento.
As fortes relações fraternas têm o mesmo ar ambíguo que se encontraria no "matrimônio de irmãos" de "A Casa Tomada", conto de "Bestiário" (1951). Assim, colocam o narrador numa posição externa ao delírio no qual os demais irão embarcar -a saber, a busca, com a ajuda de um médium, de uma explicação e um rumo para certa pintura alegórica que Renato tenta concluir.
Eis, em linhas gerais, a trama; é, porém, a forma como Cortázar escolhe narrá-la que nos remete ao segundo sentido de "Divertimento"- cuja apreensão não nos é dada tão facilmente.
Tendo começado a carreira como professor de literatura, ao longo de sua vida Cortázar desenvolveria um denso trabalho ensaístico, paralelo e subsidiário à sua ficção. Dois anos antes de "Divertimento", escrevera "A Teoria do Túnel" ("Obra Crítica 1", Civilização Brasileira, 1998), em que lançaria as bases de seu projeto romanesco. Projeto ambicioso, que buscava unir uma poética decorrente do surrealismo à filosofia existencialista, num gênero híbrido, em que prosa e poesia se combinassem partindo do homem e o devolvendo a si mesmo.
"Nosso escritor percebe em si mesmo (...) que sua condição humana não é redutível esteticamente e que, portanto, a literatura falseia o homem que ela pretendeu manifestar em sua multiplicidade e totalidade", diz no ensaio.
Inseto é, por força de sua posição isolada, o personagem existencialista de "Divertimento". Cabe a ele caminhar contra o grupo na busca de trazê-los a essa realidade a qual, numa definição a que o autor seria sempre fiel, a literatura procurava conquistar como a um pedaço de terra.
Na concepção de Cortázar, a retórica já não cabia na narrativa ficcional. "Essa agressão contra a linguagem literária, essa destruição das formas tradicionais tem a característica própria de um túnel; destrói para construir."
Em "Divertimento", o veio poético, que, para Cortázar, redimiria a linguagem romanesca, assoma em trechos em verso providos pela verve de Inseto e Renato - e, de forma mais bem assimilada, no extraordinário capítulo dois, em que já se apresentam tanto o domínio formal que o autor viria a demonstrar quanto seu tema talvez mais caro: a irrupção do fantástico no cotidiano.
Essa primeira tentativa de romance pós-"Teoria do Túnel" se perde um pouco entre o esforço inaugural, que lhe rende por vezes um tom programático, e o fracasso em cumprir tal esforço, que faz com que recaia nas convenções do gênero. Mas é, como se apontou antes, a transição, a porta aberta para um caminho que culminaria em "O Jogo da Amarelinha" (1963), filho mais perfeito dessa mesma matriz teórica.


Divertimento  
Autor: Julio Cortázar
Tradução: Paulina Wacht e Ari Roitman
Editora: Civilização Brasileira
Quanto: R$ 20 (146 págs.)



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