|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
"DIVERTIMENTO"
Cortázar caminha para o fantástico
FRANCESCA ANGIOLILLO
FREE-LANCE PARA A FOLHA
Em música, chama-se "divertimento" a uma peça leve
e lúdica. O termo indica, ainda, a
passagem, numa mesma obra, de
um tom para o outro.
Considerando que o argentino
Julio Cortázar (1914-1984) era um
melômano a ponto de dizer que
teria preferido ser músico a escritor, se tivesse talento para tanto,
não é descabido pensar que houvesse considerado esses dois significados ao intitular "Divertimento" um curto romance, escrito durante o Carnaval de 1949.
Como todas as suas investidas no
gênero até "Os Prêmios" (1960),
"Divertimento" permaneceu na
gaveta, de onde só saiu em 1986 e,
até agora, era inédito no Brasil.
A primeira das acepções resume
o que o leitor encontra de forma
imediata: um livro ligeiro, pontuado de bom humor e sarcasmo,
que assume seu caráter de jogo já
nas primeiras palavras do personagem narrador, Inseto -convenientemente, um literato.
"Falo de um tempo distante e já
cinerário, quando éramos vários e
vivíamos o que digo aqui, um
pouco para os outros e quase tudo
para os meus feriados, que preencho infatigável com palavras. A laranja se abre em gomos translúcidos que ergo ao sol de uma lâmpada para observar o glóbulo
sombrio das sementes por entre a
linfa. De um dos gomos saem os
Vigil, agora estou com eles e os
outros na casa de Villa del Parque
onde brincávamos de viver."
Os Vigil, apelido dado a um dos
dois casais de irmãos com quem
Inseto convive, são Jorge e Marta
-ele, poeta que adota a escrita
automática em escritos que ela se
empenha em taquigrafar. O outro
duo é composto de Renato e Susana -ele, pintor, surrealista, enquanto ela mantém a casa em silencioso funcionamento.
As fortes relações fraternas têm
o mesmo ar ambíguo que se encontraria no "matrimônio de irmãos" de "A Casa Tomada", conto de "Bestiário" (1951). Assim,
colocam o narrador numa posição externa ao delírio no qual os
demais irão embarcar -a saber, a
busca, com a ajuda de um médium, de uma explicação e um rumo para certa pintura alegórica
que Renato tenta concluir.
Eis, em linhas gerais, a trama; é,
porém, a forma como Cortázar
escolhe narrá-la que nos remete
ao segundo sentido de "Divertimento"- cuja apreensão não
nos é dada tão facilmente.
Tendo começado a carreira como professor de literatura, ao longo de sua vida Cortázar desenvolveria um denso trabalho ensaístico, paralelo e subsidiário à sua ficção. Dois anos antes de "Divertimento", escrevera "A Teoria do
Túnel" ("Obra Crítica 1", Civilização Brasileira, 1998), em que lançaria as bases de seu projeto romanesco. Projeto ambicioso, que
buscava unir uma poética decorrente do surrealismo à filosofia
existencialista, num gênero híbrido, em que prosa e poesia se combinassem partindo do homem e o
devolvendo a si mesmo.
"Nosso escritor percebe em si
mesmo (...) que sua condição humana não é redutível esteticamente e que, portanto, a literatura
falseia o homem que ela pretendeu manifestar em sua multiplicidade e totalidade", diz no ensaio.
Inseto é, por força de sua posição isolada, o personagem existencialista de "Divertimento". Cabe a ele caminhar contra o grupo
na busca de trazê-los a essa realidade a qual, numa definição a que
o autor seria sempre fiel, a literatura procurava conquistar como a
um pedaço de terra.
Na concepção de Cortázar, a retórica já não cabia na narrativa
ficcional. "Essa agressão contra a
linguagem literária, essa destruição das formas tradicionais tem a
característica própria de um túnel; destrói para construir."
Em "Divertimento", o veio poético, que, para Cortázar, redimiria
a linguagem romanesca, assoma
em trechos em verso providos pela verve de Inseto e Renato - e,
de forma mais bem assimilada, no
extraordinário capítulo dois, em
que já se apresentam tanto o domínio formal que o autor viria a
demonstrar quanto seu tema talvez mais caro: a irrupção do fantástico no cotidiano.
Essa primeira tentativa de romance pós-"Teoria do Túnel" se
perde um pouco entre o esforço
inaugural, que lhe rende por vezes
um tom programático, e o fracasso em cumprir tal esforço, que faz
com que recaia nas convenções
do gênero. Mas é, como se apontou antes, a transição, a porta
aberta para um caminho que culminaria em "O Jogo da Amarelinha" (1963), filho mais perfeito
dessa mesma matriz teórica.
Divertimento
Autor: Julio Cortázar
Tradução: Paulina Wacht e Ari Roitman
Editora: Civilização Brasileira
Quanto: R$ 20 (146 págs.)
Texto Anterior: Música: Beleza e balbúrdia guiam caixa de Baden Próximo Texto: Walter Salles: Entre o documentário e o entretenimento Índice
|