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São Paulo, sábado, 10 de maio de 2003

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WALTER SALLES

Entre o documentário e o entretenimento

A realidade imediata não é, às vezes, amiga dos documentaristas. Que o diga Oliver Stone. Os últimos acontecimentos em Cuba transformaram o seu documentário sobre Fidel, "El Comandante", em uma peça de museu. Resultado: a estréia do filme foi suspensa, e Stone foi obrigado a voltar a Cuba no último final de semana para refilmar.
A estréia tardia de "Tiros em Columbine" no Brasil, na próxima sexta, traz, paradoxalmente, uma vantagem: a possibilidade de assistir a um filme sobre a fascinação norte-americana pelas armas de fogo à luz do que aconteceu na guerra do Iraque. O filme não envelheceu. As teses que defende, no entanto, tornaram-se mais epidérmicas.
Moore usa o massacre cometido por dois adolescentes na cidade interiorana de Littleton, no Estado de Colorado, como ponto de partida para o filme. Foi lá que Eric e Dylan, armados até os dentes, invadiram a escola onde estudavam e abriram fogo a esmo. Deixaram 13 mortos e dezenas de feridos.
Um pouco antes de partir para o massacre, Eric e Dylan jogaram uma partidinha de boliche, donde o título do filme nos EUA: "Jogando Boliche em Columbine". Dois típicos adolescentes norte-americanos, perdidos na modorra dos subúrbios. Absorviam a mesma cultura de massa que outros milhares de adolescentes. Quem descarrilou, pergunta Moore, esses dois meninos ou o país que os moldou?
As perguntas não ficam sem resposta. Moore sugere que os Estados Unidos institucionalizaram uma cultura do medo, incentivada pelo Estado, pela mídia e pela indústria armamentista. A paranóia com a segurança e o receio do outro, sempre visto como um inimigo em potencial, explicariam a quantidade alarmante de mortes em decorrência de confrontos ou acidentes com armas de fogo nos Estados Unidos -11 mil por ano. Mais do que em qualquer outro país, conclui erroneamente Moore, expondo uma das fragilidades de "Tiros em Columbine": uma certa tendência a optar por conclusões apressadas. O recorde infelizmente pertence ao Brasil. Aqui, mais de 30 mil pessoas morrem por ano vitimadas por arma de fogo. Um número que se torna ainda mais alarmante se comparado às 68 mortes violentas causadas em condições semelhantes no Japão.
Talvez não se deva assistir ao documentário de Michael Moore buscando perspectiva histórica ou precisão de informação. O que importa aqui é a sua capacidade de desconstruir aquilo que é aceito por outros sem questionamento. Em "Tiros em Columbine", o humor sardônico de Moore se exprime em algumas cenas tão extraordinárias quanto reveladoras. A entrevista com o diretor de um banco do interior dos Estados Unidos que promete uma arma de fogo para cada cliente que abra uma conta é, por exemplo, um primor.
Idem para a entrevista de Terry Nichols, irmão de James Nichols, um dos sujeitos que explodiram uma bomba na cidade de Oklahoma em 1995, cicatriz norte-americana abafada pelo 11 de setembro. Nichols só dorme com um Colt 44 embaixo do travesseiro, mas acha pouco: "Deveríamos ter o direito de possuir nosso próprio estoque de plutônio para nos defendermos. Tem muito louco por aí", diz.
É em cenas como essa que está o melhor de "Tiros em Columbine". Deixo para J. Hoberman, o crítico do jornal nova-iorquino "Village Voice", o outro lado da moeda: "O anjo do populismo e o diabo do narcisismo pairam sobre Moore. Pelo menos, "Tiros em Columbine" é menos auto-referente que "The Big One", documentário de Michael Moore sobre si mesmo. Como filme, "Tiros em Columbine" é mal estruturado e conta com uma incômoda devoção à persona do cineasta-apresentador. Cenas em que ele abraça as vítimas de armas de fogo como se fosse a madre Teresa de Calcutá, na frente do supermercado K-mart, são particularmente constrangedoras".
Você já percebeu. A polêmica cerca Michael Moore e "Tiros em Columbine". A passagem do cineasta do céu ao inferno durante a cerimônia do Oscar, outro espetáculo de auto-referência, não ajudou a abrandar as coisas. Espinafrado pela direita e, muitas vezes, pela esquerda, vencedor de vários prêmios de público em festivais, Moore transita entre o documentário e o entretenimento. Manipulador, sarcástico, imperdível.


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