São Paulo, segunda-feira, 10 de maio de 2004

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Depois de "Dogville", Lars von Trier encerra as filmagens de "Manderlay", produção polêmica sobre a escravidão nos EUA

Escravos da América

France Presse
O diretor dinamarquês Lars von Trier durante entrevista sobre "Dogville", seu filme anterior, com Nicole Kidman e Stella Skarsgard ao fundo


FLORENCE COLOMBAN
DO "LE MONDE"

Basta cruzar os portões do estúdio e o objeto do escândalo aparece: belo porte, crina brilhante, animado, apesar do aspecto um tanto extenuado. Um cartaz no cercado anuncia: "I'm alive!" (Estou vivo!).
Já há alguns dias, a imprensa sueca se inquieta com o destino desse "ator" um tanto especial, ainda que empregado, como os demais colegas de elenco, pela Zentropa -a produtora do dinamarquês Lars von Trier. O destino do asno (o "ator" em questão) é protagonizar um assassinato.
Correm boatos de que o ator John C. Reilly teria abandonado o estúdio por conta do tratamento dispensado ao animal. Ou de que, durante a filmagem de uma cena em que exalaria seu último suspiro, o asno entrou em choque. E Von Trier o encarou e disse, com sarcasmo: "Não seja tão sueco!".
Apesar dos boatos sobre o destino do pobre animal, as filmagens de "Manderlay", encerradas há poucos dias em Trollhattan, na Suécia, foram muito calmas.
O trabalho foi diferente do realizado em "Dogville", filme anterior de Von Trier. Com uma equipe como a de "Manderlay", a sensação é a de um grupo unido em torno do cineasta. Além de sua equipe, ele reuniu ao seu redor produtores vindos de toda a Europa -Dinamarca, Suécia, Noruega, Reino Unido, Holanda, Alemanha e França.
As filmagens duraram mais de dois meses nesse canto perdido a uma hora de Goteborg (uma das principais cidades suecas), onde a paisagem de lagos e florestas se interrompe para dar espaço a uma fábrica de automóveis e a estúdios de cinema.
Atraído pela personalidade magnética e pela reputação exigente do diretor, um estranho grupo se viu coabitando na cidade -de dia, no hangar que abriga o estúdio e, de noite, em um hotel mal-assombrado, a julgar pelos boatos. Uma das maquiadoras dormiu de luz acesa durante toda a filmagem, enquanto o alemão Udo Kier (conhecido por suas interpretações em filmes de Fassbinder) demonstrava "simpatia" pelo fantasma.
Diversos atores norte-americanos célebres -Willem Dafoe, Lauren Bacall, Danny Glover, Chloë Sevigny- cercam a estreante Bryce Howard (leia texto abaixo), que retoma o papel de Grace, criado por Nicole Kidman em "Dogville". Há também diversos atores ingleses, muitos dos quais mais familiarizados com os palcos londrinos do que com os estúdios de cinema, e dois franceses, Jean-Marc Barr e Isaach de Bankolé.

Espírito de equipe
A julgar pela emoção que, expressa em salvas calorosas de aplausos, reina no último dia de filmagem, as semanas de convivência resultaram em um verdadeiro espírito de equipe.
Lars von Trier, com traços cansados e um olhar sombrio, diz: "Não consigo falar do filme. Acabei de rodá-lo. Meu espírito está confuso a respeito do trabalho".
Essa apatia e comportamento moroso são influenciados por uma boa dose de fadiga física. Não se pode esquecer que Von Trier opera ele mesmo a câmera, montada em uma espécie de arreio, como lembra um dos atores, acrescentando que "espera que no próximo filme da trilogia eles usem uma câmera mais leve. Além do estresse e da emoção da filmagem, o diretor se esforçou muito fisicamente".
No estúdio, os cenários já foram desmontados, deixando uma vasta área pintada de verde fluorescente. "Parece que estamos em Wimbledon!", comenta o diretor de fotografia Anthony Dod Mantle. O frágil revestimento permite que ele introduza efeitos especiais, via computador, no material filmado.
A produção de "Manderlay" foi cercada de segredo absoluto, e não há traços que permitam vislumbrar o estilo visual dos cenários, mencionados com grande entusiasmo pela equipe.
Só há uma certeza: o filme obedece "ao mesmo princípio que "Dogville'", ou seja, supõe-se que a cidade esteja novamente desenhada no chão, com as linhas espaçadas com intervalos suficientes para sugerir portas e paredes. Em conversas ouvidas ao acaso, pode-se perceber que uma casa de fazenda colonial faz parte do cenário. Quanto à trama, mais uma vez gira em torno de Grace e se desenrola antes de "Dogville", no sul dos EUA. Trata-se, assim, de "um drama sobre a escravatura". A equipe concorda, igualmente, em que o filme leva "ainda mais longe" as posições assumidas em "Dogville", e que o resultado será fortemente polêmico.


Tradução Paulo Migliacci


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