São Paulo, segunda-feira, 10 de maio de 2004

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NELSON ASCHER

Rumsfeldgate

Esse filme, eu já vi. Os personagens, os detalhes superficiais do enredo e a ordem dos episódios eram diferentes. Mas a estrutura da trama era fundamentalmente idêntica. Ocorreu em 21 de janeiro de 1998. A história da relação extraconjugal do presidente com uma jovem estagiária da Casa Branca começou a circular pela manhã e, antes do anoitecer, os comentaristas já estavam falando em "impeachment".
A intervenção, seis dias depois, da primeira-dama declarando à imprensa que uma "grande conspiração direitista" estava por trás das acusações a seu marido, bem como as negações deste e, no dia seguinte, seu brilhante discurso anual no Congresso enterraram provisoriamente o escândalo. Longe do público, contudo, a intriga fermentou até eclodir de novo, com toda a força, no segundo semestre do mesmo ano. Se Clinton, que nunca perdeu o apoio da maioria dos eleitores, conseguiu se manter na Presidência, a segunda metade de seu segundo mandato se resumiu a uma longa batalha político-judicial.
George Bush é tão visceralmente detestado pelos liberais quanto Clinton havia sido pelos conservadores. Algo da intensidade do ódio ao presidente anterior se resume numa reação a seu carisma. Que o atual desperte emoções tão pessoalmente hostis é mais difícil de entender, pois se trata de uma figura remota, incolor, quase abstrata. Talvez seja precisamente isto que, aos olhos dos adversários, o transforma em símbolo encarnado de seu partido ou país.
Como no caso de Clinton, os adversários de Bush buscaram derrubá-lo desde o início e, irritantemente para eles, a opinião pública não tem se abalado. Posto que seu principal trunfo advém da assim chamada guerra contra o terror, é também aí que seu calcanhar-de-aquiles costuma ser procurado.
Sua administração, com o intuito de depor Saddam, enfatizou excessivamente o perigo das armas de destruição em massa iraquianas e, dado que ninguém as encontrou, a ausência foi usada para caracterizar o presidente como mentiroso. Sucede que a discussão a respeito delas se desenrolou e se esgotou cedo demais para influenciar as próximas eleições. O passo seguinte foi converter a rebelião sunita em Al Fallujah e o levante do clérigo xiita Moqtada Sadr em novos Vietnãs. Ao que tudo indica, porém, um perdeu o apoio do restante do clero local e a outra está sob controle. Ambos saíram das manchetes.
O escândalo do momento decorre tanto dos abusos, torturas e, quem sabe, assassinatos perpetrados por soldados e carcereiros americanos contra iraquianos na prisão de Abu Ghraib como do fato de que seus crimes foram fotografados e filmados. O que os olhos vêem o coração sente e, embora nem torturadores nem criminosos gostem de ser reconhecidos na rua e os carrascos tradicionalmente usem máscaras, os acusados se sentiam estranhamente à vontade diante das câmeras. Resultado: em questão de dias o presidente teve de se desculpar ao vivo na TV, e seu ministro da defesa, Donald Rumsfeld, depôs sobre o assunto diante dos congressistas.
Que uma ocorrência gravíssima se bem que não exatamente incomum nas lutas armadas tenha adquirido tamanhas proporções se explica pela singularidade desta conflagração. A guerra mundial em curso consiste num conjunto de guerras civis imbricadas. Uma contenda entre muçulmanos se converteu numa "jihad" contra o Ocidente, que se dividiu em duas metades (EUA e Europa) em conflito, uma das quais, a americana, se encontrava previamente subdividida em dois lados: a administração Bush e seus opositores. Quanto ao campo que ocupa o poder, ele tampouco é unitário e, em seu interior, duas facções se contrapõem, com o secretário de Estado, Collin Powell, encabeçando a ala moderada e Rumsfeld, a linha dura.
Se há algo importante a saber acerca do ministro da Defesa é que ele presenciou o atentado de 11 de setembro de 2001 ao Pentágono. Influenciado, ao que se diz, por seus assessores neoconservadores, ele é o estrategista por trás da guerra contra o terror e muitos, sobretudo no Departamento de Estado, na CIA e entre os generais, se ressentem de sua influência, que conta com o apoio do vice-presidente, "Dick" Cheney.
Antes dos ataques terroristas Rumsfeld enfrentara o comando de um Exército que pretendia modernizar. Seu desempenho posterior, apesar de uma atitude que, sobranceira, lembra o Coriolano de Shakespeare, fez dele o membro mais importante (e invejado) do governo. Não é por acidente, assim, que, o tomando como alvo central, o desastre carcerário se converteu rapidamente numa espécie de Rumsfeldgate, onde membros anônimos da administração espalham boatos enquanto políticos e jornalistas pedem sua cabeça.
É ao presidente que caberá decidir o destino do subordinado. Caso não o demita, vão chamá-lo de conivente e, caso o faça, de desleal. Como saber qual decisão causará menos prejuízo às suas perspectivas de se reeleger? São dois os fatores relevantes: a opinião pública e as dimensões que o escândalo pode ou não adquirir. Por um lado, o eleitorado ainda está com o ministro politicamente incorreto, que fala francamente e desafia os repórteres. Por outro, sabe-se lá que revelações nos aguardam. No momento, a deslealdade parece mais arriscada.
A demissão de Rumsfeld, além de alegrar seus inimigos pessoais, constituirá uma vitória para o pior obscurantismo surgido desde a Segunda Guerra. Aconteça o que acontecer, a Casa Branca será forçada, até o fim da presente gestão, a tentar administrar os danos, deixando o combate aos fundamentalistas islâmicos em compasso de espera.


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