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NELSON ASCHER
Rumsfeldgate
Esse filme, eu já vi. Os personagens, os detalhes superficiais do enredo e a ordem dos episódios eram diferentes. Mas a estrutura da trama era fundamentalmente idêntica. Ocorreu em 21
de janeiro de 1998. A história da
relação extraconjugal do presidente com uma jovem estagiária
da Casa Branca começou a circular pela manhã e, antes do anoitecer, os comentaristas já estavam
falando em "impeachment".
A intervenção, seis dias depois,
da primeira-dama declarando à
imprensa que uma "grande conspiração direitista" estava por trás
das acusações a seu marido, bem
como as negações deste e, no dia
seguinte, seu brilhante discurso
anual no Congresso enterraram
provisoriamente o escândalo.
Longe do público, contudo, a intriga fermentou até eclodir de novo, com toda a força, no segundo
semestre do mesmo ano. Se Clinton, que nunca perdeu o apoio da
maioria dos eleitores, conseguiu
se manter na Presidência, a segunda metade de seu segundo
mandato se resumiu a uma longa
batalha político-judicial.
George Bush é tão visceralmente detestado pelos liberais quanto
Clinton havia sido pelos conservadores. Algo da intensidade do
ódio ao presidente anterior se resume numa reação a seu carisma.
Que o atual desperte emoções tão
pessoalmente hostis é mais difícil
de entender, pois se trata de uma
figura remota, incolor, quase abstrata. Talvez seja precisamente isto que, aos olhos dos adversários,
o transforma em símbolo encarnado de seu partido ou país.
Como no caso de Clinton, os adversários de Bush buscaram derrubá-lo desde o início e, irritantemente para eles, a opinião pública não tem se abalado. Posto que
seu principal trunfo advém da assim chamada guerra contra o terror, é também aí que seu calcanhar-de-aquiles costuma ser procurado.
Sua administração, com o intuito de depor Saddam, enfatizou
excessivamente o perigo das armas de destruição em massa iraquianas e, dado que ninguém as
encontrou, a ausência foi usada
para caracterizar o presidente como mentiroso. Sucede que a discussão a respeito delas se desenrolou e se esgotou cedo demais para
influenciar as próximas eleições.
O passo seguinte foi converter a
rebelião sunita em Al Fallujah e o
levante do clérigo xiita Moqtada
Sadr em novos Vietnãs. Ao que
tudo indica, porém, um perdeu o
apoio do restante do clero local e
a outra está sob controle. Ambos
saíram das manchetes.
O escândalo do momento decorre tanto dos abusos, torturas e,
quem sabe, assassinatos perpetrados por soldados e carcereiros
americanos contra iraquianos na
prisão de Abu Ghraib como do fato de que seus crimes foram fotografados e filmados. O que os
olhos vêem o coração sente e, embora nem torturadores nem criminosos gostem de ser reconhecidos na rua e os carrascos tradicionalmente usem máscaras, os acusados se sentiam estranhamente
à vontade diante das câmeras.
Resultado: em questão de dias o
presidente teve de se desculpar ao
vivo na TV, e seu ministro da defesa, Donald Rumsfeld, depôs sobre o assunto diante dos congressistas.
Que uma ocorrência gravíssima
se bem que não exatamente incomum nas lutas armadas tenha
adquirido tamanhas proporções
se explica pela singularidade desta conflagração. A guerra mundial em curso consiste num conjunto de guerras civis imbricadas.
Uma contenda entre muçulmanos se converteu numa "jihad"
contra o Ocidente, que se dividiu
em duas metades (EUA e Europa)
em conflito, uma das quais, a
americana, se encontrava previamente subdividida em dois lados:
a administração Bush e seus opositores. Quanto ao campo que
ocupa o poder, ele tampouco é
unitário e, em seu interior, duas
facções se contrapõem, com o secretário de Estado, Collin Powell,
encabeçando a ala moderada e
Rumsfeld, a linha dura.
Se há algo importante a saber
acerca do ministro da Defesa é
que ele presenciou o atentado de
11 de setembro de 2001 ao Pentágono. Influenciado, ao que se diz,
por seus assessores neoconservadores, ele é o estrategista por trás
da guerra contra o terror e muitos, sobretudo no Departamento
de Estado, na CIA e entre os generais, se ressentem de sua influência, que conta com o apoio do vice-presidente, "Dick" Cheney.
Antes dos ataques terroristas
Rumsfeld enfrentara o comando
de um Exército que pretendia
modernizar. Seu desempenho
posterior, apesar de uma atitude
que, sobranceira, lembra o Coriolano de Shakespeare, fez dele o
membro mais importante (e invejado) do governo. Não é por acidente, assim, que, o tomando como alvo central, o desastre carcerário se converteu rapidamente
numa espécie de Rumsfeldgate,
onde membros anônimos da administração espalham boatos enquanto políticos e jornalistas pedem sua cabeça.
É ao presidente que caberá decidir o destino do subordinado. Caso não o demita, vão chamá-lo de
conivente e, caso o faça, de desleal. Como saber qual decisão
causará menos prejuízo às suas
perspectivas de se reeleger? São
dois os fatores relevantes: a opinião pública e as dimensões que o
escândalo pode ou não adquirir.
Por um lado, o eleitorado ainda
está com o ministro politicamente
incorreto, que fala francamente e
desafia os repórteres. Por outro,
sabe-se lá que revelações nos
aguardam. No momento, a deslealdade parece mais arriscada.
A demissão de Rumsfeld, além
de alegrar seus inimigos pessoais,
constituirá uma vitória para o
pior obscurantismo surgido desde
a Segunda Guerra. Aconteça o
que acontecer, a Casa Branca será forçada, até o fim da presente
gestão, a tentar administrar os
danos, deixando o combate aos
fundamentalistas islâmicos em
compasso de espera.
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