São Paulo, sábado, 10 de maio de 1997.



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O QUE É ISSO, COMPANHEIRO
Gabeira não se vê em personagem do filme

Dadá Cardoso/ Folha Imagem
O deputado Fernando Gabeira, autor de ''O Que É Isso, Companheiro''


LUIZ CAVERSAN
Diretor da Sucursal do Rio

Os personagens reais que sequestraram o embaixador americano Charles Elbrick em 1969 e se sentem injustamente retratados no filme "O Que É Isso, Companheiro?", de Bruno Barreto, estão sofrendo à toa.
A afirmação é de um participante do sequestro, o deputado federal e colunista da Folha Fernando Gabeira, autor do livro homônimo que deu origem ao filme.
Envolvido na polêmica que opõe ex-sequestradores e seus partidários aos realizadores do filme -os primeiros acusam os segundos de, no mínimo, terem deturpado a história-, Gabeira pretere a política em nome da estética: "Vejo o filme como um filme", afirma.
Segundo ele, o roteiro do filme não deve ser confundido com o livro e que seu personagem faz coisas -como ameaçar de morte o embaixador- que Gabeira diz não ter feito.

Folha - O filme é fiel ao livro?
Fernando Gabeira -
Eu acho o filme fiel ao livro e às minhas concepções sobre o que se passou, desde que você não entenda a palavra fidelidade como algo literal. Houve um acordo entre mim, o Leopoldo Serran (roteirista) e o Bruno (Barreto, diretor) que eles teriam liberdade, que eu não iria interferir.
Então, quanto aos temas mais polêmicos, eles podem se apoiar no livro para justificá-los.
Quanto à ambiguidade do personagem do torturador, eu já tinha mostrado que o torturador brasileiro podia ser um bom pai de família, um bom oficial. Mas era um torturador, um profissional. Essa idéia foi muito bem recebida num mesa em Roma, sobretudo pelos escritores Gabriel García Márquez e Julio Cortázar.
Folha - Que ano foi isso?
Gabeira -
Foi depois do golpe do Chile, 75, 76. O torturador não podia ser visto como um monstro. Apresentá-lo assim iria dificultar compreender a banalidade do mal.
Folha - E o livro é fiel à história?
Gabeira -
O livro é fiel à maneira como eu via a história. Não falo uma coisa ali que eu me desminta. Mas como é uma história vista de muitos ângulos, pode haver confrontos com outras versões.
Folha - Há momentos da sua história que você corrigiu, como a questão do manifesto, certo?
Gabeira -
A questão do manifesto não está no livro. Não há referência no livro que eu era o autor dele. Absolutamente!
Folha - O que você corrigiu no livro em relação ao Franklin Martins (participante do sequestro e autor do manifesto)?
Gabeira -
Eu não corrigi, eu não tinha dito quem era o autor. No momento em que escrevi o livro não estava claro para a polícia que tinha sido ele. Por isso eu não mencionei a autoria.
Folha - E por que essa polêmica, em que você é acusado de ter assumido a autoria do manifesto?
Gabeira -
Existem pessoas que querem confundir o roteiro do filme com o livro. Que querem dar a impressão de que eu escrevi o roteiro para dar à minha biografia elementos que ela não tem. O que acho um absurdo. O Elio Gaspari escreveu isso com muita má fé na Folha. Eu não preciso retocar a minha biografia e acho que ele também não precisa retocar a dele dos tempos da ditadura.
O que aconteceu é que os caras tiveram a liberdade de fazer o roteiro do filme e quando estavam fazendo o roteiro -o próprio Bruno confessou-, pensaram: "O Gabeira, ou esse personagem que corresponde ao Gabeira, não tem qualidade nenhuma. Não sabe dirigir, não sabe atirar, então vamos botar alguma coisa nele, ele pelo menos sabe escrever".
Possivelmente, 30 anos atrás, meus companheiros se perguntaram: "Pô, mas o que este cara está fazendo aqui?".
Folha - E o que você estava fazendo lá?
Gabeira -
Eu já estava na clandestinidade. Havia alugado uma casa, onde estávamos instalando uma impressora para fazer um jornal clandestino de oposição.
Quando eles conceberam o sequestro, não tinham o lugar para onde levar o embaixador.
Folha - Você não participou da concepção do sequestro?
Gabeira -
Isso apareceu no roteiro e as pessoas de má fé tentam dizer que eu estou alterando...
Folha - E o personagem do filme, como você o avalia, principalmente na cena em que ele põe o revólver na cabeça do embaixador?
Gabeira -
Também não aconteceu isso.
Folha - Foi um exagero na carga dramática?
Gabeira -
Ele mesmo (Barreto) acha que exagerou.
Folha - Você concorda com isso?
Gabeira -
Havia no ar um ultimato ao governo. Mas o ultimato foi aceito sem grandes dramas. As minhas filhas assistiram ao filme e ficaram impressionadas.
Folha - Elas perguntaram se você mataria o embaixador?
Gabeira -
Perguntaram. A menor, de 10 anos, estava torcendo para o embaixador. Mas jamais houve esse episódio de eu estar quase matando. Isso é extremamente difícil de levar adiante, porque os americanos já não me dão o visto (de entrada nos EUA), porque disse anos atrás que, caso não aceitassem as nossas exigências, o embaixador seria morto. Agora, eles não me dão o visto nunca mais (risos).
Folha - Você gosta do filme?
Gabeira -
Eu gosto. É um grande filme político, no sentido de que ele inova politicamente, já não é mais o filme político das outras décadas, maniqueísta. É um filme político moderno, como eu entendo que "Larry Flint" ("O Povo Contra Larry Flint", de Milos Forman) é. Além disso, tem uma unidade na direção de atores muito presente. O roteiro é bem estruturado, mantém o público que não conhecia aquela história interessado. Acho que a música é uma grande descoberta. E, pelo que vi em Berlim, é um dos melhores filme do mundo este ano.
Folha - Você não acha seus companheiros daquela época foram depreciados?
Gabeira -
Na verdade, não foram retratados companheiros. O que ele procurou fazer foi uma síntese dos principais tipos que existiam na luta armada, não só daquela ação, mas de todas as ações. Não havia a mínima intenção de prejudicar pessoas reais.
Ele tinha que trabalhar várias personagens. É um painel psicológico da luta armada através dos participantes da ação. Você é obrigado a condensar épocas e até a fazer com que no final as pessoas já tivessem uma visão crítica da luta armada, quando isso aconteceu muito mais tarde.
Folha - Então você acha que não dá para identificar personagens do filme com pessoas da vida real, como está ocorrendo?
Gabeira -
Absolutamente. Nem dá para caracterizar que aquele personagem sou eu. Não sou eu! As pessoas que se sentem prejudicadas vão sofrer inutilmente, e as que se sentem beneficiadas vão se alegrar estupidamente.
Você tem que se acostumar com essa relação com a ficção. Outros filmes virão sobre esse momento histórico. E os artistas vão se apropriar da maneira deles, queiram os personagens da história ou não.
Folha - Por que você acha que eles estão tendo dificuldade de se relacionar com a ficção?
Gabeira -
Em primeiro lugar porque são pessoas de extremo valor, que tiveram uma participação generosa naquele momento e que não foram reconhecidas pela sociedade brasileira.
Folha - Você acha que há um ressentimento?
Gabeira -
Quando eles se sentem retratados de uma maneira que não absorve a riqueza, a generosidade e a complexidade deles, eles ficam sentidos. Eles não se distanciam do fato histórico. Eles acham que a sociedade brasileira está devendo um documentário.
Folha - Mas há um ressentimento da parte de seus antigos companheiros em relação a você. Você não cumpriu o papel de contextualizá-los?
Gabeira -
São pessoas que eu respeito e admiro muito...
Folha - Parece que esse sentimento não é mútuo...
Gabeira -
De modo geral eu diria que não é mútuo. O que pode ter contribuído é que, vivendo numa situação limite -luta armada, clandestinidade, cadeia, exílio- evoluímos de maneira diferente.
A minha evolução foi ditada pelas minhas contradições internas e pelas circunstâncias que eu encontrei. A deles também. Não quero dizer que a minha tenha sido melhor que a deles. O meu livro não foi feito com a intenção de ser uma "honra ao mérito".
Não é justo dizer que eu sou irônico a respeito dos companheiros. Eu sou irônico a respeito de mim mesmo. Eu não pude render as homenagens a eles em meu livro porque não era essa a minha intenção.
Folha - Você não acha que o filme é muito mais triste e menos irônico e debochado do que sua fonte de inspiração, que é o livro?
Gabeira -
O livro olha o que se passou da perspectiva de um cara que sobreviveu e não está mal. O filme termina com pessoas extremamente sofridas.
Folha - O cinema é um novo caminho profissional para você?
Gabeira -
Eu gosto muito da linguagem, quero contribuir com o cinema brasileiro. Vejo o filme como um filme.
Um dos debates mais importantes que eu já fiz foi sobre "Terra em Transe" (de Glauber Rocha), há 30 anos. Discutíamos o nosso futuro político. Hoje eu sou forçado a discutir por meio do filme do Bruno o nosso passado político. Não se discute o filme -ele é um pretexto para se discutir suas posições políticas.
O Marcelo Coelho diz na Folha que o filme safadamente pega a aurora e o pôr-do-sol para agradar o mercado exterior e tal. Como se naquele momento a aurora e o pôr-do-sol do Rio não continuassem bonitos.
São pouquíssimos os que analisam o filme esteticamente. Trinta anos depois eu não queria ter a mesma posição que eu tive sobre "Terra em Transe", que tinha uma proposta política que eu não gostava. Eu anulei a estética.
Folha - Você se considera, então, 30 anos à frente?
Gabeira -
Não. É que a estética costuma nos dizer coisas na frente da política. Peço às pessoas que querem ver as coisas que não anulem o aspecto estético, ficar preso só à questão política é perder a dimensão de uma obra.
Folha - Você acha isso possível até para quem foi torturado?
Gabeira -
Talvez a mensagem estética seja mais interessante para uma pessoa que foi torturada do que a mensagem política.
Folha - O filme vai ser lançado nos EUA e você vai se defrontar mais uma vez com o problema do visto...
Gabeira -
Agora eu terei um aliado importante para entrar nos EUA, que é a Miramax, que comprou o direito de lançar o filme lá. Creio que agora vai surgir um movimento cultural interno muito forte para me ajudar a entrar lá.



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