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Para familiares, filme 'absolve a ditadura'
EMANUEL NERI
da Reportagem Local
Representante dos familiares de
mortos e desaparecidos do regime
militar na comissão do governo federal que repara financeiramente
aquelas perdas, Suzana Lisboa, 45,
acha que o filme "O Que É Isso,
Companheiro?", de Bruno Barreto, "absolve a ditadura".
Ex-militante da ALN (Ação Libertadora Nacional), um dos grupos armados que enfrentavam o
regime militar, Suzana diz que
Barreto "inventou fatos no filme"
de forma deliberada para melhorar a imagem dos militares.
Viúva de Luiz Eurico Tejera, que
desapareceu em 72 depois de ser
preso pelos militares, ela acha que
Barreto transforma em um "facínora" o personagem de Virgílio
Gomes da Silva, o operário que comanda o sequestro do embaixador
Charles Elbrick, em 1969.
Barreto, segundo Suzana, trata
os personagens femininos como
"prostituta ou sargentona estereotipada", adotando o "mesmo
discurso da ditadura". É o caso da
personagem da guerrilheira Vera
Sílvia, que dorme com um segurança para obter informações.
Folha - Quais os pontos do filme
com os quais os familiares mais
discordam?
Suzana Lisboa - O que nós mais
abominamos -e pelo qual o Barreto tem que ser responsabilizado- é a imagem que ele passa do
Virgílio Gomes da Silva, o "Jonas", mostrado como facínora.
Depois, achamos que ele absolve a
ditadura. E mostra guerrilheiros
de forma totalmente distorcida.
Folha - A história foi alterada no
filme? Há personagens falsos?
Suzana - Ele alterou a história.
Fez uma propaganda de que era
um filme com uma história verdadeira. Só que é um filme de ficção.
Quem vai ao cinema sai sem saber
que aquilo é totalmente uma ficção. E nós discordamos totalmente dessa ficção que ele criou.
Então por que se basear em fatos
reais? Ele devia ter feito uma ficção
e não se basear no livro de Fernando Gabeira, que é um depoimento.
Os fatos que o Gabeira relata são
verdadeiros. Barreto cria uma história em cima disso, dando uma
opinião dele sobre esses fatos.
Folha - Para os familiares, qual o
efeito dessas alterações?
Suzana - O efeito é bombástico.
Estamos há mais de duas décadas
lutando para resgatar a história e
mostrar quem foram os verdadeiros terroristas deste país.
Como o "Jonas" é apresentado
como um facínora, quem lê no
"Dossiê dos Mortes e Desaparecidos" que pedaços de seu corpo ficaram grudados na parede (da dependência militar em que estava
preso) nem vai se impressionar
tanto, já que ele era um facínora.
Da mesma forma que o torturador era um cara humano, o cara
que morre desse jeito era um facínora. Eles esquartejaram corpos,
mas os terroristas éramos nós.
Folha - Quais os outros personagens com imagens distorcidas?
Suzana - O Joaquim Câmara
Ferreira, o "Toledo", dirigente da
ALN que foi morto sob torturas
-em nenhum momento ele conta
isso-, aparece como um velho
idiota que ficava se aproveitando
dos jovens. Fica como um idiota,
ouvindo a "Internacional".
O próprio embaixador Elbrick
também tem sua imagem distorcida. Ele foi expulso do Brasil porque se posicionou contra os métodos da ditadura e porque se dispôs
a dar depoimentos favoráveis aos
seus próprios sequestradores.
Folha - Quais são as medidas práticas que os familiares pensam em
adotar para reparar os equívocos?
Suzana - Acho que os familiares do Virgílio devem entrar com
ação por danos morais. Barreto fez
a ficção que queria. Agora, tem de
ser responsabilizado por isso.
Folha - A sra. acha que houve
desconhecimento da história ou
foi uma opção deliberada?
Suzana - Foi uma opção. Ele
mesmo diz que os sequestradores
são baseados em personagens
reais. Propõe a absolvição da ditadura no momento em que mostra
um torturador com crise de consciência.
Folha - Então torturador não pode ter crise de consciência?
Suzana - Pode até ter. Mas isso
não acontecia naquela época,
quando a Oban (Operação Bandeirantes) era clandestina. Não era
organizada, como ficou depois,
dentro dos Doi/Codi, que eram ligados ao Exército. Naquela época,
não havia crise de consciência. Se
você conversar com alguns deles,
vão dizer que fariam tudo de novo.
Folha - Na sua opinião, a absolvição dos militares é ideológica?
Suzana - Acho que essa proposta é clara. O discurso de que o regime militar não tinha nada a ver
com a tortura, de que ela era clandestina, é feito até hoje. A gente sabe que era o contrário. A tortura
era uma política do Estado.
Folha - Bruno Barreto diz que
tem "empatia" pela esquerda.
Suzana - Mas não foi isso o que
ele fez. Se ele queria suscitar o debate, está suscitando. Ele não tem
como não reconhecer que essa absolvição da ditadura está colocada
em todos os fatos que ele romanceou. Por que ele não coloca que o
embaixador foi expulso do Brasil?
Porque ele não ia querer se contrapor à ditadura. Por que ele mostra
a tortura como uma coisa "an
passant". Por que ele não diz o que
aconteceu com as pessoas que viveram aquele período?
Folha - Para Barreto, a esquerda
esperava um "thriller americano",
com sequestradores sendo "mocinhos" e torturadores, "bandidos".
Suzana - De jeito nenhum.
Nem a própria esquerda faz apologia de seus feitos. Ninguém quer
ser herói. Buscamos mostrar o que
a ditadura fez.
Pegar as mulheres e mostrar, como ele mostra no filme, como
prostituta ou como uma sargentona estereotipada, é assumir o mesmo discurso da ditadura, que não
aceitava a participação da mulher,
que devia estar na cozinha.
Folha - É o caso da sequestradora
Vera Sílvia, que no filme dorme
com um segurança para obter informações? É um viés machista?
Suzana - Claro. E coloca o personagem da atriz Fernanda Torres
como uma "sargentona". Outra
coisa que ele diz é que havia uma
luta de classe dentro da esquerda.
Não sei de onde ele tirou isso.
Folha - Barreto diz que não fez
um filme para os torturados, mas
para as pessoas que entram no cinema sem informações do fato.
Suzana - Pior ainda. O espectador que chega lá sem ter nenhuma
informação só pode sair absolvendo o regime militar.
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