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NÓS QUE NOS AMÁVAMOS TANTO
Cenas de sexo foram amenizadas e referências a Ney Matogrosso desapareceram do filme
Cazuza da ficção suprime histórias reais
DA REPORTAGEM LOCAL
Sexo, drogas e rock'n'roll não
poderiam ser coadjuvantes numa
cinebiografia de Cazuza. Mas, ao
menos quanto ao sexo, artistas
envolvidos na ficção e/ou na vida
real sabem que sua presença foi
reduzida na forma final do filme.
O primeiro a estranhá-lo é o pai
de Cazuza (e presidente da Som
Livre, braço fonográfico da Rede
Globo), João Araújo, que afirma
gostar do filme -especialmente
do amor entre filho e pais que ele
extravasa. Eis a ressalva:
"Quiseram ter muito cuidado
com o lado homossexual de Cazuza. No que começaram a tomar
cuidado demais, para não transparecer e para não virar filme
proibido para menores, afastaram-se bastante da realidade".
O pai de um dos brasileiros pioneiros na adoção da sexualidade
livre como discurso público completa: "Nunca tive problema com
ele por sua opção sexual. Só não
gostaria que ele fosse bicha, daquelas de salto alto".
O ator Daniel Oliveira, Cazuza
no filme, exemplifica a atenuação.
"A cena do García Lorca [de sexo
homossexual], fiz de cueca e sem
cueca. Não por exibicionismo,
mas pela poesia da cena, acho que
era melhor sem cueca. Mas eu
aparecia de frente, teria que subir
a censura do filme. Uma cuequinha não vai fazer mal a ninguém."
A diretora Sandra Werneck explica a opção: "Tinha um pouquinho mais [de sexo]. Daniel Filho
cortou, a gente não queria pegar
uma censura 18 anos, que ia tirar
o público que a gente quer sacudir. Foi por uma boa causa", diz.
Sobe a voz do produtor Daniel
Filho: "Tudo o que foi feito no filme foi de comum acordo com
Sandra. Não existiu nenhuma ordem de cima para baixo, ou de
produtor para diretor, para que se
exercesse um corte em proveito
de abaixar a censura".
Roberto Frejat é outro que estranha o tratamento sexual dado
no filme ao amigo do peito e ex-colega de Barão Vermelho. "Há
uma dificuldade por parte de Lucinha Araújo em reconhecer que
Cazuza era homossexual, não bissexual. Nunca vi prática heterossexual nele. Teve, sim, mas quando não estava completamente
convencido de ser gay, bem antes
de me conhecer", afirma Frejat,
que diz achar "Cazuza" bonito
por não ser "filme para chorar"
nem "novela das oito".
O roteirista Fernando Bonassi,
para quem Cazuza "era pansexual", diz que não se incomoda se
"está clara ou menos clara no filme" a informação sobre a sexualidade de Cazuza. "O importante é
saber se as pessoas entenderam
que a liberdade sexual que ele tinha se refletia em suas canções."
Para a mãe de Cazuza, "a realidade era sexo, drogas e
rock'n'roll". "Eu preferia que fosse só rock'n'roll, mas o rock não
existe sem drogas e sexo."
No relato ficcional da travessia
trágica da vida real, desapareceu
do filme o episódio capital da publicação, pela revista "Veja", de
uma capa com Cazuza perto da
morte e o título "Uma vítima da
Aids agoniza em praça pública".
"Eu e minha família fizemos
questão de enterrar esse assunto",
diz João Araújo, que afirma não
ter feito nenhuma interferência
no roteiro. "Nem li inteiro, só passei os olhos. Minha mulher, sim."
Lucinha tenta amenizar a dor.
"Cazuza ajudou milhões de soropositivos a mostrarem a cara no
Brasil." Frejat concorda. "Hoje, o
Brasil tem uma postura de referência quanto à Aids no mundo, e
acho que deve isso em parte à posição que Cazuza teve na época."
Crucial na fase terminal de Cazuza foi também seu ex-namorado (e cantor) Ney Matogrosso,
outro dos reais ausentes na ficção.
"Ney foi um amigo como poucos,
não fugiu, como 50% fugiram. Ele
era tão grande que acharam por
bem tirá-lo, não sou eu que vou
me meter", diz Lucinha.
"Ele foi o cantor que mais se
aproximou do Cazuza. Ney é um
superartista, ia ficar o coadjuvante do coadjuvante se fosse reduzido a três seqüências do filme", explica Sandra Werneck. Ney Matogrosso está em Portugal e não respondeu às perguntas enviadas pela Folha.
Cazuza segue atravessando toda
a quadrilha, feito um provocador
do Brasil, que renasce em praça
pública, uma geração mais tarde.
(PEDRO ALEXANDRE SANCHES e SILVANA ARANTES)
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