São Paulo, sábado, 10 de junho de 2006

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FÁBIO DE SOUZA ANDRADE

Passeio ao farol

A sobrevivência aristocrática dos valores do mundo helênico serve a Kaváfis para uma reflexão sobre a história

GREGO DE Alexandria, confinado entre os muros de uma língua de circulação restrita, Konstantinos Kaváfis (1863-1933) deixou pouco mais de uma centena e meia de poemas jamais reunidos em livro durante sua vida. Estes bastaram para firmar-lhe a importância moderna, embebidos no refinamento decadentista comumente associado à vocação nostálgica e antiquária do Oriente helenista, mas também em certo simbolismo finissecular e seu gosto, pela alusão indireta e pela multiplicação de máscaras poéticas pelo refúgio na arte, aperfeiçoamento da vida.
Some-se a tanto a figura dândi do poeta, homossexual, a meio caminho entre a discrição de Fernando Pessoa e o requinte de Proust ou Santos Dumont, burocrata respeitável que celebrava a efemeridade do erotismo, da juventude e da beleza, oferta clandestina, mas farta, na noite de sua cidade, e eis um caso de interesse na poesia do século passado.
Não foram apenas Nikos "Zorba, o Grego" Kazantzákis e Margherite Yourcenar, autora de uma apresentação crítica de sua obra, que se deixaram impressionar. Em "Pharos e Pharillon: Uma Evocação de Alexandria", o romancista inglês E. M. Forster faz um curioso contraponto entre personagens e cenas do passado glorioso e da cidade contemporânea, prosaica produtora de algodão, todo ele articulado por poemas e um perfil de Kaváfis. O "Quarteto de Alexandria", de Lawrence Durrell, também traz um velho poeta que o ecoa.
Se não podemos dizer que o poeta passou em branco em português (há uma tradução parcial, seguida de belo e pioneiro ensaio, de José Paulo Paes, esgotada, e uma lisboeta, de Jorge de Sena), cabe celebrar a edição bilíngüe de toda sua poesia canônica, traduzida e anotada pela professora Ísis Borges da Fonseca.
Grande conhecedora do grego moderno e antigo, a tradutora deslinda as complexidades lingüísticas de um autor que forjou seu estilo, limpo, entre a rigidez do "katharévussa", de expressão culta e formal, e o "demótico", nova língua comum eivada de elementos de oralidade e estrangeirismos próprios a um idioma no exílio.
Sempre por um ângulo insuspeito, lateral e cotidiano, irônico ou elegíaco, nunca de uma solenidade oca, a sobrevivência aristocrática e paradoxal dos valores do mundo helênico, ainda que assimilado e sob jugo, serve a Kaváfis para uma reflexão sobre a história, a exemplaridade das derrocadas e o saldo ambíguo das vitórias.
Personagens exemplares, Cesário, Marco Antônio, Herodes Ático ganham vida e voz, convertem-se em imagem. A mesma força evocativa, concretizante, marca sua lírica amorosa, escavando e recompondo a memória do corpo jovem, ideal do belo, em si e no mundo, revertendo, na linguagem, a fugacidade e a imperfeição da experiência. A poesia de Kaváfis pode se orgulhar de fazer estragos na linha de frente dos bárbaros.


POEMAS DE K. KAVÁFIS     
Autor: Konstantinos Kaváfis
Tradução: Ísis Borges da Fonseca
Editora: Odysseus
Quanto: R$ 56 (408 págs.)


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