São Paulo, Quinta-feira, 10 de Junho de 1999
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CONTARDO CALLIGARIS
É a época do fatalismo narcisista

Descendo a Pamplona, o engarrafamento de sempre. Comento sobre a estupidez dos que avançam no cruzamento entupido. O motorista do táxi faz exatamente o que acabo de criticar. Logo bloqueado no meio de um concerto de buzinas, ele se vira, pisca o olho e me diz: "A gente é brasileiro, não é?".
Em menos de 30 segundos são brigas de carro a carro. Aproveito para observar que ser brasileiro desse jeito talvez seja perigoso. E o motorista responde: "O pessoal é nervoso, tem que soltar mesmo".
Em suma, ser brasileiro e nervoso são propriedades que têm virtudes explicativas. Não foi sempre assim. De fato, cada época tem suas explicações preferidas.
Nos dias de Homero, você podia ser assaltado e esfaqueado na esquina de casa como hoje. Mas sua explicação (ou a dos amigos em seu velório) colocaria o destino como responsável em última instância. Por certo, você poderia acusar seu assassino e exigir vingança; mas no fundo o triste acontecimento seria no sentido etimológico fatídico. Assim estava escrito.
A mesma coisa, aliás, valeria para seu assaltante. Se por acaso ele fosse atormentado por sua consciência, poderia se acalmar com a idéia de que o destino armou sua mão.
Alguns séculos mais tarde (permanecendo no Ocidente),o destino foi substituído pela providência divina. Dá na mesma, a não ser pela idéia de que as ações, embora todas providenciais, implicam punições e recompensas. Em suma, o homem me assaltou porque Deus quis e isso deve ter alguma significação providencial. É uma espécie de destino personalizado. Só que, mesmo Deus querendo, o homem é responsável e irá para o inferno. Daí uma discussão infinita para saber quem chega primeiro, liberdade ou determinação.
De qualquer forma, a idéia de que a liberdade poderia ser a razão dos atos humanos preparava uma nova explicação pelo contexto social e pela história. Neste caso mais familiar para nós o assalto se explica como vingança social de um oprimido ou como momento de verdade revolucionária.
Não só o passado, mas também a esperança e o projeto de um futuro melhor tornam-se assim critérios para entender atos e acontecimentos.
Ora, a explicação pela sociedade e pela história perdeu terreno. Sobretudo nas últimas três ou quatro décadas se afirmaram duas outras explicações que hoje convivem (e que talvez sejam responsáveis por nossa pouca imaginação política e social). Elas foram sintetizadas por nosso motorista de táxi.
Há a explicação pela singularidade (sempre considerada autêntica). Para ela, o verdadeiro agente está na indomável subjetividade de cada ser humano. A briga se explica porque "o pessoal é nervoso". O assaltante me esfaqueou, mas me consola a idéia de que assim ele expressou livremente suas recônditas pulsões. Pena que às vezes um se expressa e o outro leva facadas.
E há a explicação pela cultura. Esta talvez seja a que está mais na moda. Aqui nosso assaltante não é agente do destino, nem emissário divino, nem vingador dos oprimidos, nem um indivíduo que conseguiu enfim se expressar esfaqueando. Ele é só um exponente de nossa cultura, no caso um brasileiro, o qual, por exemplo, participa do rapto como modalidade originária própria da cultura desta ex-colônia.
Também ele pratica violência no corpo de suas vítimas com o entusiasmo desinibido de quem se inspira em séculos intermináveis de escravidão. Do mesmo jeito, um outro - porque é americano do Texas e "portanto" racista - amarra um negro à sua pick-up. E por aí vai.
A explicação cultural tem algo em comum com a explicação pela subjetividade. Ambas apontam para o espelho. Vejam só: destino e providência propunham interpretações por uma vontade outra: aconteceu não por causa da gente, mas porque alguém, eventualmente Deus, quis. A história explica pelo passado e pelo anseio de um projeto. Ou seja, aconteceu como momento de um processo, de uma evolução.
Ora, cultura e subjetividade, nossas explicações contemporâneas preferidas, pretendem explicar pelo que somos. Furo fila, não paro no farol, não pago imposto, sou propinador porque sou brasileiro. Ponto. Ou então: não levanto de manhã, não faço café para meus filhos porque expresso minha depressão. Normalmente era Deus quem respondia: eu sou quem eu sou. Agora, a criatura se apoderou deste pleonasmo: somos quem somos. E isso vale como explicação.
Poderíamos explicar nossos atos pela cultura ou pela subjetividade e mesmo assim querer mudar. Mas não é o que acontece geralmente. As imagens que temos de nossas tripas psíquicas e da cultura à qual pertencemos se tornam destino: é o fatalismo narcisista. Graças a ele, não mudaremos nunca.
Nossa realidade social talvez corresponda apenas a uma caricatura do ser brasileiro. Tanto faz, pois nos alegramos sempre que reconhecemos qualquer imagem no espelho. Olha só! Somos nós! Por isso, cultuamos traços patológicos de caráter como se fossem jóias de família. E tristes heranças culturais como se fossem bandeiras gloriosas.


E-mail: ccalligari@uol.com.br


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