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CONTARDO CALLIGARIS
É a época do fatalismo narcisista
Descendo a Pamplona, o engarrafamento de sempre. Comento sobre a estupidez dos
que avançam no cruzamento
entupido. O motorista do táxi
faz exatamente o que acabo de
criticar. Logo bloqueado no
meio de um concerto de buzinas, ele se vira, pisca o olho e
me diz: "A gente é brasileiro,
não é?".
Em menos de 30 segundos são
brigas de carro a carro. Aproveito para observar que ser
brasileiro desse jeito talvez seja
perigoso. E o motorista responde: "O pessoal é nervoso, tem
que soltar mesmo".
Em suma, ser brasileiro e nervoso são propriedades que têm
virtudes explicativas. Não foi
sempre assim. De fato, cada
época tem suas explicações preferidas.
Nos dias de Homero, você podia ser assaltado e esfaqueado
na esquina de casa como hoje.
Mas sua explicação (ou a dos
amigos em seu velório) colocaria o destino como responsável
em última instância. Por certo,
você poderia acusar seu assassino e exigir vingança; mas no
fundo o triste acontecimento
seria no sentido etimológico fatídico. Assim estava escrito.
A mesma coisa, aliás, valeria
para seu assaltante. Se por acaso ele fosse atormentado por
sua consciência, poderia se
acalmar com a idéia de que o
destino armou sua mão.
Alguns séculos mais tarde
(permanecendo no Ocidente),o
destino foi substituído pela
providência divina. Dá na mesma, a não ser pela idéia de que
as ações, embora todas providenciais, implicam punições e
recompensas. Em suma, o homem me assaltou
porque Deus quis
e isso deve ter alguma significação providencial.
É uma espécie de
destino personalizado. Só que,
mesmo Deus querendo, o homem é
responsável e irá
para o inferno.
Daí uma discussão infinita para
saber quem chega
primeiro, liberdade ou determinação.
De qualquer
forma, a idéia de
que a liberdade
poderia ser a razão dos atos humanos preparava
uma nova explicação pelo contexto social e pela
história. Neste
caso mais familiar para nós o assalto se explica
como vingança
social de um oprimido ou como
momento de verdade revolucionária.
Não só o passado, mas também a esperança e o projeto de
um futuro melhor tornam-se
assim critérios para entender
atos e acontecimentos.
Ora, a explicação pela sociedade e pela história perdeu terreno. Sobretudo nas últimas
três ou quatro décadas se afirmaram duas outras explicações que hoje convivem (e que
talvez sejam responsáveis por
nossa pouca imaginação política e social). Elas foram sintetizadas por nosso motorista de
táxi.
Há a explicação pela singularidade (sempre considerada
autêntica). Para ela, o verdadeiro agente está na indomável
subjetividade de cada ser humano. A briga se explica porque "o pessoal é nervoso". O assaltante me esfaqueou, mas me
consola a idéia de que assim ele
expressou livremente suas recônditas pulsões. Pena que às
vezes um se expressa e o outro
leva facadas.
E há a explicação pela cultura. Esta talvez seja a que está
mais na moda. Aqui nosso assaltante não é agente do destino, nem emissário divino, nem
vingador dos oprimidos, nem
um indivíduo que conseguiu
enfim se expressar esfaqueando. Ele é só um exponente de
nossa cultura, no caso um brasileiro, o qual, por exemplo,
participa do rapto como modalidade originária própria da
cultura desta ex-colônia.
Também ele pratica violência
no corpo de suas vítimas com o
entusiasmo desinibido de
quem se inspira em séculos intermináveis de escravidão. Do
mesmo jeito, um outro - porque é americano do Texas e
"portanto" racista - amarra
um negro à sua pick-up. E por
aí vai.
A explicação cultural tem algo em comum com a explicação
pela subjetividade. Ambas
apontam para o espelho. Vejam só: destino e providência
propunham interpretações por
uma vontade outra: aconteceu
não por causa da gente, mas
porque alguém, eventualmente
Deus, quis. A história explica
pelo passado e pelo anseio de
um projeto. Ou seja, aconteceu
como momento de um processo, de uma evolução.
Ora, cultura e subjetividade,
nossas explicações contemporâneas preferidas, pretendem
explicar pelo que somos. Furo
fila, não paro no farol, não pago imposto, sou propinador
porque sou brasileiro. Ponto.
Ou então: não levanto de manhã, não faço café para meus
filhos porque expresso minha
depressão. Normalmente era
Deus quem respondia: eu sou
quem eu sou. Agora, a criatura
se apoderou deste pleonasmo:
somos quem somos. E isso vale
como explicação.
Poderíamos explicar nossos
atos pela cultura ou pela subjetividade e mesmo assim querer
mudar. Mas não é o que acontece geralmente. As imagens
que temos de nossas tripas psíquicas e da cultura à qual pertencemos se tornam destino: é o
fatalismo narcisista. Graças a
ele, não mudaremos nunca.
Nossa realidade social talvez
corresponda apenas a uma caricatura do ser brasileiro. Tanto faz, pois nos alegramos sempre que reconhecemos qualquer imagem no espelho. Olha
só! Somos nós! Por isso, cultuamos traços patológicos de caráter como se fossem jóias de família. E tristes heranças culturais como se fossem bandeiras
gloriosas.
E-mail: ccalligari@uol.com.br
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