São Paulo, quarta-feira, 10 de julho de 2002

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PATATIVA

Escritor, que conheceu a poesia pela tradição oral, começou a fazer versos para distrair população regional

Obra sempre cantou o mundo acima de rótulos

GILMAR DE CARVALHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Por que em meio a tantos poetas violeiros e poetas populares Patativa do Assaré se destacou e se tornou referência? Por que tantos passaram e ele ficou?
A maior parte de seu tempo, Patativa esteve na Serra de Santana, a 18 km do Assaré, onde nasceu e que considerava seu paraíso particular.
Tomou conhecimento da poesia pela tradição oral, ouvindo um cordel. Aquilo calou fundo. Aos quatro perdeu um olho, o que deve ter aguçado sua compreensão do mundo.
Estudou quatro meses numa escola formal e passou a ler pelo resto da vida, até a década de 90, quando cegou de vez.
Por que Patativa vai ficar? Por ter trabalhado com afinco e determinação, não para construir uma carreira, mas pela necessidade de dizer o mundo. Aos 16 anos, veio a viola que lhe deu a agilidade do improviso e ecoa na musicalidade de seus poemas.
Passou a fazer versos para distrair os serranos. E, desde 1930, chamou a atenção de José Carvalho de Brito, que incluiu o artigo "O Patativa" no livro "O Matuto Cearense e o Caboclo do Pará" (Gráfica do Jornal de Belém), levado que foi à Amazônia por um parente encantado com a maviosidade de seu canto.
Na volta, o trabalho do campo, no eito, cultivando os poucos hectares herdados do pai. E construiu-se a trajetória do violeiro que nunca "fez comércio de sua lira": viagens em lombo de burro, apresentações com vários parceiros e os aplausos. Longe dos holofotes, durante 25 anos ele elaborou sua obra.
Na roça, isolava-se para compor poesia. A memória privilegiada ajudava. Visualizado o quadro, composto o poema, passava a limpo à noite, à luz de lamparinas.
Muito do que ele criou perdeu-se na voragem do tempo. As palavras ditas, apesar de fortes, se diluem. Ficou o escrito, depois impresso, sempre marcado por forte oralidade.
Seus poemas, recitados durante as cantorias, circulavam sertão adentro.

Noites sertanejas
Assim começou a sedimentação do mito. Patativa como um aedo, herdeiro da linhagem de Homero, fez da poesia um canto de trabalho e de liberdade. Poemas que animavam as noites sertanejas, com a força desse "performer", intérprete e porta-voz.
Assim se tecia a obra de Patativa. Até o dia em que indo à feira do Crato passou a dizer seus poemas na rádio Araripe, no programa de Teresinha Siebra.
José Arraes de Alencar ouviu e teve a idéia de publicar um livro. Moacir, filho do folclorista Leonardo Mota, ficou encarregado de datilografar os poemas. Foi a gênese da "Inspiração Nordestina" (1956), semente de uma obra essencial.
Em livro, podia ser lido e relido, mas a força de sua poesia vinha de uma oralidade que se perfaz quando é enunciada e de ser escrita para ser lida em voz alta.
Depois foi o disco: Luiz Gonzaga gravou sua "Triste Partida", em 1964.
Patativa continuou na serra, mesmo depois de ter publicado outros livros, gravado discos, sido homenageado pela SBPC (1979), participado da campanha pela anistia, das diretas-já. Quando se mudou para a cidade, já tinha 70 anos e era uma referência. Disputado pela esquerda, que via nele a resistência, e pela direita, que recuperava antigos folhetos ("Glosas contra o Comunismo") e tentava vendê-lo como mantenedor das tradições.
Patativa sempre foi mais que isso, esteve acima dos rótulos e desorientava as dicotomias. Sempre pensou maior. Da sua aldeia ele cantou o mundo. E o fez com a leveza do pássaro que lhe serviu de epíteto e com a contundência de quem foi capaz de se indignar e interferir por meio do verso feito arma.
Sua poesia social nunca foi militante, no sentido do panfleto político, mas uma poesia cidadã, enunciada por uma voz que parte da ancestralidade para atualizá-la. Daí a sua importância. Por isso ele vai permanecer, porque nunca quis ser anedótico e, quando fala de algo presente (reforma agrária, televisão, meninos de rua), trata o cotidiano com a grandeza do épico e a eternidade de um clássico.
Sua voz veio do oco do tempo e ecoará enquanto a poesia for necessária: sempre.
Seus versos brotavam da terra como frutos, superando a dicotomia entre natureza e cultura. Como disse um semioticista ucraniano (Lotman): "Toda obra inovadora é elaborada com um material tradicional". Patativa fez essa síntese.
A mídia o cercou com insistência. A academia aos poucos se abre para sua contribuição. E sua fruição vai das camadas subalternas à intelectualidade.
Impressionante sua dignidade, sua altivez e sua ética sertaneja, marcada por códigos rígidos como lealdade e coerência e, ao mesmo tempo, pela generosidade e compaixão.
Lê-lo é importante, mas dá uma pálida idéia do que significava ouvi-lo, não por meio de registros sonoros, mas de viva voz, onde o corpo franzino se agigantava e sua gesticulação fazia dele não o poeta, mas a poesia.


Gilmar de Carvalho é doutor em comunicação e semiótica pela PUC de São Paulo e organizador do livro "Patativa do Assaré - Antologia Poética"



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