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LIVROS/LANÇAMENTOS
Calhamaço sobre guerras e transformações do mundo reúne verbetes esdrúxulos e delírios de interpretação
"Enciclopédia" do século 20 vira almanaque
MARCOS GUTERMAN
EDITOR-ADJUNTO DE MUNDO
O título é grandiloqüente:
"Enciclopédia de Guerras e
Revoluções do Século 20 - As
Grandes Transformações do
Mundo Contemporâneo". Em
um vistoso calhamaço de quase
mil páginas, a obra dá a entender
que vai sintetizar em verbetes boa
parte dos conflitos de um século
que os esbanjou. De longe, parece
um gigante historiográfico; de
perto, no entanto, tem vários momentos de almanaque.
Louve-se que um grupo de estudiosos brasileiros, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, tenha tido a pretensão de reunir
textos que abordassem o conhecimento que temos sobre o século
que mal acabou. Elogie-se a idéia
de privilegiar trabalhos produzidos no Brasil, para, nas palavras
da apresentação, "mostrar a existência, nos meios acadêmicos
brasileiros, de um vasto saber".
A julgar pelo resultado, contudo, estamos condenados a ficar
por muito tempo na periferia da
produção de conhecimento.
O livro é um amontoado de textos sem nenhuma unidade aparente, muito menos a sugerida pelo título. Na apresentação, diz-se
que a obra não usaria o termo "revolução" segundo sua acepção
meramente política, abrangendo
também aspectos culturais e tecnológicos. O que pode soar sofisticado, no entanto, acaba sendo
uma espécie de salvo-conduto
editorial para verbetes esdrúxulos
e vários delírios de interpretação.
De que outra forma seria possível explicar que, entre as "grandes
transformações do mundo contemporâneo", esteja o "Adesivo",
nada menos que o terceiro verbete do dicionário?
Grandes historiadores já produziram textos memoráveis a partir
de fatos e coisas banais, identificando neles a gênese de comportamentos e suas relações processuais. Mas não é esse o caso aqui:
o tal verbete ignora olimpicamente a suposta dimensão histórica
do avanço técnico a que se refere.
Ficamos sabendo que, "no final
do século 20, existia uma grande
variedade de adesivos devido às
suas inúmeras aplicações", mas
não há uma linha que justifique
por que razão, afinal, têm "relevância para o tempo presente",
nas palavras da apresentação.
Desprezo teórico
A obra diz que seus idealizadores decidiram abrir mão de
"quaisquer construções teóricas
que obscurecessem o entendimento do leitor", porque o objetivo era "explicar ao homem comum o tempo em que vivemos".
É curioso que mais de 250 pesquisadores e estudiosos se vinculem
a um projeto que se declara deliberadamente divorciado das estruturas teóricas, centrais no trabalho dos historiadores.
O resultado desse desprezo não
tarda a se manifestar. A primeira
pista está logo na epígrafe: é a letra
de "Dogs of War", do Pink Floyd,
um libelo pueril e superficial contra a guerra e o capitalismo. É a senha para menos teoria e mais "engajamento", com óbvio prejuízo
para a compreensão da história.
Há vezes em que esse prejuízo se
manifesta de forma espantosa,
como no caso do obscuro "Catalisadores para Polimerização". Nele, lê-se, sem maiores explicações,
que "a combinação de um composto de metal de transição (catalisador) com um composto organometálico (co-catalisador)" forma "um sistema catalítico de múltiplos tipos de sítios ativos".
A falta de estrutura teórica talvez explique também por que
"Internet" e "Genoma Humano",
duas das autênticas revoluções a
que alude o título do livro, tenham merecido verbetes menores do que, por exemplo, a "Frelimo, Frente de Libertação de Moçambique", ou a "República Curda de Mahabad", esta, premiada
com uma arenga de mais de duas
páginas, a despeito de seus efeitos
sobre os destinos do mundo terem sido virtualmente nulos.
A apresentação da "Enciclopédia" sugere que o Brasil terá lugar
de destaque na obra, mas a "Revolução de 1930", que alterou dramaticamente o ambiente econômico e político no país, mereceu
um verbete infinitamente menor
do que o dedicado, por exemplo,
ao direitista francês Le Pen.
"Escolhas estratégicas"
Há outras ausências históricas
ainda mais importantes, apesar
de os organizadores da "Enciclopédia" terem feito "escolhas estratégicas", como está dito na
apresentação do livro.
O leitor terá a oportunidade de
conhecer a momentosa "Guerra
do Bacalhau", conflito entre Reino Unido e Islândia na década de
70, mas chegará ao fim das 900 e
tantas páginas sem ler um verbete
sobre darwinismo social, um conceito-chave para o século que o livro pretende abordar.
As "escolhas estratégicas" estão
claras também no peso editorial
dado a eventos de caráter anticapitalista. O governo do socialista
chileno Salvador Allende, para ficar em um exemplo, ganhou ampla cobertura: aparece em nada
menos que três verbetes, um deles
batizado de "Revolução Chilena",
seja lá o que isso signifique.
Mas as "escolhas estratégicas"
também levam a resultados difíceis de explicar, considerando
qualquer um dos parâmetros historiográficos consagrados. O verbete para a Revolução Russa, que,
na opinião de Hobsbawm, foi o
fato mais importante do século
20, tem a metade do tamanho do
verbete dedicado à Revolução
Sandinista, subproduto marginal
daquele movimento.
Outras coisas fundamentais são
sacrificadas, além das teorias. A
principal delas parece ter sido o
rigor histórico.
O verbete "Operação Condor e
Política", por exemplo, diz que
João Goulart, deposto em 1964, foi
vítima de atentado em Buenos Aires no âmbito da ação coordenada dos agentes das ditaduras sul-americanas. Ou seja, trata como
verdade histórica aquilo que não
passa de uma suspeita.
O mesmo texto atribui a Nixon
e a Kissinger a "autoria intelectual" do golpe no Chile, o que
também não está respaldado por
nenhum documento. Além disso,
tal acusação presta um imenso favor a Pinochet, diminuindo-lhe a
responsabilidade histórica no golpe de 73.
Quando aparece a crise do
Oriente Médio, há mais problemas. O verbete "Faixa de Gaza e
Questão Palestina" atribui a paralisação dos efeitos dos Acordos de
Oslo ao assassinato do premiê israelense Yitzhak Rabin por um
extremista judeu, em 1995, e à
posterior eleição do direitista
Benjamin Netanyahu para o cargo de premiê, em 1996. Não há
uma única linha sobre a onda de
atentados terroristas cometidos
por palestinos às vésperas da eleição em Israel. Os ataques mataram cerca de 60 pessoas em duas
semanas e praticamente inviabilizaram a vitória do trabalhista Shimon Peres, herdeiro do projeto
político de Rabin.
Em outras passagens do livro,
há considerações cujo fundamento é bastante precário. No verbete
"Doutrina Bush", diz-se que, devido à apertada vitória na eleição,
"esperava-se que ele [Bush] fizesse um governo de consenso nacional em composição com seus
adversários". Essa expectativa jamais existiu, e a chance de que
viesse a existir é remota, pois não
é da tradição de governança norte-americana.
No mesmo verbete, lê-se que a
Alemanha ampliou seu espaço no
cenário internacional após se despir "dos medos e das culpas decorrentes do genocídio". Mas não
foi isso o que aconteceu. Pelo contrário: a atitude pacifista alemã
após a derrota na Segunda Guerra
é resultado da permanente purgação pública de seu passado.
Rodapé
Pode-se dizer que um dos trunfos do trabalho sejam as indicações bibliográficas, mas mesmo aí
há problemas. E não são poucos, a
começar pelo hábito cabotino de
citar-se a si mesmo como "referência" sobre determinado tema.
No verbete "Campos de Extermínio", a fragilidade bibliográfica
aflora quando a autora junta Hannah Arendt, cuja contribuição para a discussão do tema dispensa
comentários, e Ben Abraham, um
sobrevivente do Holocausto sem
estatura acadêmica.
Nenhum dos textos relacionados à barbárie nazista cita um de
seus maiores estudiosos, o sociólogo alemão Norbert Elias. Mas
Norman Finkelstein, crítico histérico e raso da instrumentalização
do Holocausto pelos judeus, é
mencionado pelo menos duas vezes, ambas de forma positiva.
Há casos de miséria bibliográfica explícita, como o verbete
"Guerra do Pacífico", episódio
fundamental na Segunda Guerra,
cuja única referência é "The Times Atlas of World History".
A essa enciclopédia de problemas soma-se ainda a abundância
de verbetes sobre temas semelhantes, às vezes idênticos, o que
talvez tenha resultado da necessidade de acomodar tantos colaboradores. Um dos recordistas absolutos de abordagem na "Enciclopédia" é o cinema, tema que
mereceu nada menos que 21 entradas, em dezenas de páginas.
Nem mesmo o "Cinema Revolucionário Vietnamita" ficou de
fora. Sobrou espaço inclusive para um certo "Cinema de Lágrimas
(Melodrama)", chamado de "metáfora cultural de uma América
Latina em meio a processos de
transformações sociais, políticas e
econômicas entre as décadas de
1930 e 1950". Isso é que é produção de conhecimento.
Mas o leitor não deve desanimar. Quando estiver exausto de
tantas informações relevantes sobre polímeros, turfe e a Conferência de Monróvia, ele poderá descansar dando uma olhadinha no
verbete "Banhos de Mar".
Enciclopédia de Guerras e Revoluções do Século 20
Autor: Francisco Carlos Teixeira da Silva
(org.)
Editora: Campus/Elsevier
Quanto: R$ 189 (963 págs.)
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