São Paulo, sábado, 10 de julho de 2004

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LIVROS/LANÇAMENTOS

Calhamaço sobre guerras e transformações do mundo reúne verbetes esdrúxulos e delírios de interpretação

"Enciclopédia" do século 20 vira almanaque

MARCOS GUTERMAN
EDITOR-ADJUNTO DE MUNDO

O título é grandiloqüente: "Enciclopédia de Guerras e Revoluções do Século 20 - As Grandes Transformações do Mundo Contemporâneo". Em um vistoso calhamaço de quase mil páginas, a obra dá a entender que vai sintetizar em verbetes boa parte dos conflitos de um século que os esbanjou. De longe, parece um gigante historiográfico; de perto, no entanto, tem vários momentos de almanaque.
Louve-se que um grupo de estudiosos brasileiros, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, tenha tido a pretensão de reunir textos que abordassem o conhecimento que temos sobre o século que mal acabou. Elogie-se a idéia de privilegiar trabalhos produzidos no Brasil, para, nas palavras da apresentação, "mostrar a existência, nos meios acadêmicos brasileiros, de um vasto saber".
A julgar pelo resultado, contudo, estamos condenados a ficar por muito tempo na periferia da produção de conhecimento.
O livro é um amontoado de textos sem nenhuma unidade aparente, muito menos a sugerida pelo título. Na apresentação, diz-se que a obra não usaria o termo "revolução" segundo sua acepção meramente política, abrangendo também aspectos culturais e tecnológicos. O que pode soar sofisticado, no entanto, acaba sendo uma espécie de salvo-conduto editorial para verbetes esdrúxulos e vários delírios de interpretação.
De que outra forma seria possível explicar que, entre as "grandes transformações do mundo contemporâneo", esteja o "Adesivo", nada menos que o terceiro verbete do dicionário?
Grandes historiadores já produziram textos memoráveis a partir de fatos e coisas banais, identificando neles a gênese de comportamentos e suas relações processuais. Mas não é esse o caso aqui: o tal verbete ignora olimpicamente a suposta dimensão histórica do avanço técnico a que se refere.
Ficamos sabendo que, "no final do século 20, existia uma grande variedade de adesivos devido às suas inúmeras aplicações", mas não há uma linha que justifique por que razão, afinal, têm "relevância para o tempo presente", nas palavras da apresentação.

Desprezo teórico
A obra diz que seus idealizadores decidiram abrir mão de "quaisquer construções teóricas que obscurecessem o entendimento do leitor", porque o objetivo era "explicar ao homem comum o tempo em que vivemos". É curioso que mais de 250 pesquisadores e estudiosos se vinculem a um projeto que se declara deliberadamente divorciado das estruturas teóricas, centrais no trabalho dos historiadores.
O resultado desse desprezo não tarda a se manifestar. A primeira pista está logo na epígrafe: é a letra de "Dogs of War", do Pink Floyd, um libelo pueril e superficial contra a guerra e o capitalismo. É a senha para menos teoria e mais "engajamento", com óbvio prejuízo para a compreensão da história.
Há vezes em que esse prejuízo se manifesta de forma espantosa, como no caso do obscuro "Catalisadores para Polimerização". Nele, lê-se, sem maiores explicações, que "a combinação de um composto de metal de transição (catalisador) com um composto organometálico (co-catalisador)" forma "um sistema catalítico de múltiplos tipos de sítios ativos".
A falta de estrutura teórica talvez explique também por que "Internet" e "Genoma Humano", duas das autênticas revoluções a que alude o título do livro, tenham merecido verbetes menores do que, por exemplo, a "Frelimo, Frente de Libertação de Moçambique", ou a "República Curda de Mahabad", esta, premiada com uma arenga de mais de duas páginas, a despeito de seus efeitos sobre os destinos do mundo terem sido virtualmente nulos.
A apresentação da "Enciclopédia" sugere que o Brasil terá lugar de destaque na obra, mas a "Revolução de 1930", que alterou dramaticamente o ambiente econômico e político no país, mereceu um verbete infinitamente menor do que o dedicado, por exemplo, ao direitista francês Le Pen.

"Escolhas estratégicas"
Há outras ausências históricas ainda mais importantes, apesar de os organizadores da "Enciclopédia" terem feito "escolhas estratégicas", como está dito na apresentação do livro.
O leitor terá a oportunidade de conhecer a momentosa "Guerra do Bacalhau", conflito entre Reino Unido e Islândia na década de 70, mas chegará ao fim das 900 e tantas páginas sem ler um verbete sobre darwinismo social, um conceito-chave para o século que o livro pretende abordar.
As "escolhas estratégicas" estão claras também no peso editorial dado a eventos de caráter anticapitalista. O governo do socialista chileno Salvador Allende, para ficar em um exemplo, ganhou ampla cobertura: aparece em nada menos que três verbetes, um deles batizado de "Revolução Chilena", seja lá o que isso signifique.
Mas as "escolhas estratégicas" também levam a resultados difíceis de explicar, considerando qualquer um dos parâmetros historiográficos consagrados. O verbete para a Revolução Russa, que, na opinião de Hobsbawm, foi o fato mais importante do século 20, tem a metade do tamanho do verbete dedicado à Revolução Sandinista, subproduto marginal daquele movimento.
Outras coisas fundamentais são sacrificadas, além das teorias. A principal delas parece ter sido o rigor histórico.
O verbete "Operação Condor e Política", por exemplo, diz que João Goulart, deposto em 1964, foi vítima de atentado em Buenos Aires no âmbito da ação coordenada dos agentes das ditaduras sul-americanas. Ou seja, trata como verdade histórica aquilo que não passa de uma suspeita.
O mesmo texto atribui a Nixon e a Kissinger a "autoria intelectual" do golpe no Chile, o que também não está respaldado por nenhum documento. Além disso, tal acusação presta um imenso favor a Pinochet, diminuindo-lhe a responsabilidade histórica no golpe de 73.
Quando aparece a crise do Oriente Médio, há mais problemas. O verbete "Faixa de Gaza e Questão Palestina" atribui a paralisação dos efeitos dos Acordos de Oslo ao assassinato do premiê israelense Yitzhak Rabin por um extremista judeu, em 1995, e à posterior eleição do direitista Benjamin Netanyahu para o cargo de premiê, em 1996. Não há uma única linha sobre a onda de atentados terroristas cometidos por palestinos às vésperas da eleição em Israel. Os ataques mataram cerca de 60 pessoas em duas semanas e praticamente inviabilizaram a vitória do trabalhista Shimon Peres, herdeiro do projeto político de Rabin.
Em outras passagens do livro, há considerações cujo fundamento é bastante precário. No verbete "Doutrina Bush", diz-se que, devido à apertada vitória na eleição, "esperava-se que ele [Bush] fizesse um governo de consenso nacional em composição com seus adversários". Essa expectativa jamais existiu, e a chance de que viesse a existir é remota, pois não é da tradição de governança norte-americana.
No mesmo verbete, lê-se que a Alemanha ampliou seu espaço no cenário internacional após se despir "dos medos e das culpas decorrentes do genocídio". Mas não foi isso o que aconteceu. Pelo contrário: a atitude pacifista alemã após a derrota na Segunda Guerra é resultado da permanente purgação pública de seu passado.

Rodapé
Pode-se dizer que um dos trunfos do trabalho sejam as indicações bibliográficas, mas mesmo aí há problemas. E não são poucos, a começar pelo hábito cabotino de citar-se a si mesmo como "referência" sobre determinado tema.
No verbete "Campos de Extermínio", a fragilidade bibliográfica aflora quando a autora junta Hannah Arendt, cuja contribuição para a discussão do tema dispensa comentários, e Ben Abraham, um sobrevivente do Holocausto sem estatura acadêmica.
Nenhum dos textos relacionados à barbárie nazista cita um de seus maiores estudiosos, o sociólogo alemão Norbert Elias. Mas Norman Finkelstein, crítico histérico e raso da instrumentalização do Holocausto pelos judeus, é mencionado pelo menos duas vezes, ambas de forma positiva.
Há casos de miséria bibliográfica explícita, como o verbete "Guerra do Pacífico", episódio fundamental na Segunda Guerra, cuja única referência é "The Times Atlas of World History".
A essa enciclopédia de problemas soma-se ainda a abundância de verbetes sobre temas semelhantes, às vezes idênticos, o que talvez tenha resultado da necessidade de acomodar tantos colaboradores. Um dos recordistas absolutos de abordagem na "Enciclopédia" é o cinema, tema que mereceu nada menos que 21 entradas, em dezenas de páginas.
Nem mesmo o "Cinema Revolucionário Vietnamita" ficou de fora. Sobrou espaço inclusive para um certo "Cinema de Lágrimas (Melodrama)", chamado de "metáfora cultural de uma América Latina em meio a processos de transformações sociais, políticas e econômicas entre as décadas de 1930 e 1950". Isso é que é produção de conhecimento.
Mas o leitor não deve desanimar. Quando estiver exausto de tantas informações relevantes sobre polímeros, turfe e a Conferência de Monróvia, ele poderá descansar dando uma olhadinha no verbete "Banhos de Mar".


Enciclopédia de Guerras e Revoluções do Século 20
 
Autor: Francisco Carlos Teixeira da Silva (org.)
Editora: Campus/Elsevier
Quanto: R$ 189 (963 págs.)



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