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FORNADA DO MILÊNIO
Pênaltis, identidade e o patriotismo orgânico
GERALD THOMAS
em Nova York
"Pega ele! Pega ele! Derruba
ele!", berrava um brasileiro enrolado na bandeira, todas as
vezes em que um jogador holandês se aproximava da área
brasileira. Magro, jovem, cara
pintada e cabelos tingidos de
verde e amarelo, seu corpo se
contraía, e lágrimas jorravam
de seus olhos enquanto urrava,
como se fosse um soldado enfiado numa trincheira, pronto
para jogar sua última granada.
Uma menina nervosa, que
andava em círculos sem conseguir fixar seu olhar na tela da
televisão localizada dentro do
bar, tentava acalmá-lo: "Que é
isso, cara, isso não é uma guerra!". "É guerra, sim!", ecoavam
outros, "é isso mesmo, tem que
derrubar!".
Numa calçada no centro de
Manhattan, a cena era surreal.
Alguns americanos completamente alheios à Copa do Mundo atravessavam a rua, com
medo daquela "tribo" pintada
com cores exóticas, intoxicada
por um estranho ritual estranhamente organizado.
Poucos policiais, algumas câmeras e gente de todas as cores
sofriam com o desenrolar da
prorrogação.
"O que estou fazendo aqui?",
eu me perguntava um pouco
encabulado por estar ali, assistindo a isso tudo do conforto
recluso de um automóvel, encostado na beira da calçada de
um bar brasileiro da rua 46.
Muito nervoso, eu não assistia
o jogo em si, preferindo receber
a notícia de um gol brasileiro
por meio da exaltação do povo
na calçada. Sem coragem de
ver o desenrolar da partida em
casa, saí em busca de companhia, de gente que compartilhava a minha agonia. Assim
como numa guerra, aqui esquecemos nossas diferenças e
classes sociais e nos rendemos,
plenamente, a essa paixão. E,
como se estivesse em plena
guerra, eu queria me unir a essa "identidade nacional", tão
rara nos dias de hoje, tão anonimizada pela globalização,
tão fora de moda.
O grupo imenso de "não-convidados" enchia a calçada e se
espremia contra a porta de vidro fechada do bar, tentando
ver as imagens que brilhavam
na tela. Lembrava uma cena
do Maracanã, daquela turma
que fica lá embaixo, exilada,
separada do campo por uma
grade, a famosa "geral". "Será
que fico aqui no carro?", eu
perguntava em voz alta. "É,
acho melhor, mais "seguro'."
De repente, enxergo um amigo na multidão e vou correndo
ao encontro dele. Era Liszt
Vieira, ex-exilado, ex-deputado e hoje um professor universitário estagiando na Columbia University. "Que loucura",
dizia ele, "esse pessoal está me
lembrando um grupo de prisioneiros espremidos contra as
grades da prisão".
Eu sabia que iria encontrá-lo
ali, pois o conheço desde os
anos 70, quando eu trabalhava na Anistia Internacional
em Londres como voluntário,
responsável pelos presos políticos, desaparecidos e exilados
brasileiros.
Liszt, que sabe muito bem o
que é ser espremido contra as
grades, foi expulso do Brasil
nos anos 60, por acreditar num
patriotismo diferente daquele
exercido pelos generais da ditadura, mas muito semelhante
a esse que ora vemos em pleno
funcionamento nessa calçada,
um patriotismo orgânico, uma
espécie de manifestação viva e
exuberante da preservação de
uma identidade nacional.
"Ninguém está mais disposto
a morrer pela pátria, uma noção furada que envelheceu",
dizia Liszt, eufórico, "mas, pelo menos, de quatro em quatro
anos, esse evento nos faz lembrar que somos brasileiros e
morremos na alma, se o país
perder". "Não vai perder", eu
interrompia, "pelo amor de
Deus, não pode perder!". Calmo como um mestre zen, Liszt
apertava a minha mão e dizia,
confiante: "O Brasil vai ganhar!".
Dias antes, ele e eu havíamos
nos espremido contra as grades de um píer abandonado do
East River, para ver o show patrioticamente deslumbrante de
fogos de artifício, em comemoração do 4 de julho, a independência americana. "O que a
gente está fazendo aqui?", eu
perguntava a ele, enquanto os
fogos coloriam o céu de Manhattan. "Estamos vendo uma
espécie de Copa americana,
que tem rumo, data certa e
não perde nunca. E essa é parte da beleza da identidade
americana", concluía.
De fato. A tal "imagem" do
Brasil fica ótima em época de
Copa. Fica pop.
Lembra coisas boas, coisas
jovens. O Brasil vira uma espécie de igual, as gritantes diferenças sociais e econômicas
entre ele e os EUA parecem
atingir aquele estranho patamar de idolatria e irmandade
que os países do Primeiro
Mundo têm entre si. Todos
passam a gostar do Brasil. Nesses momentos, não se publicam artigos sobre a devastação
da Amazônia ou sobre a absurda injustiça social do país.
Nesse momento, o Brasil tem
uma cara jovem, simpática,
uma cara talentosa, forte e virtuosa, que o americano adora.
"Pega ele! Pega ele!", gritava
nosso magro soldado. Nos minutos finais da prorrogação, a
tensão era tão grande que o
coro aderia: "Pega ele! Pega
ele!".
De repente, na multidão, outra cara conhecida, outro amigo, um judeu desterrado como
eu, Daniel Feingold, um pintor
brasileiro que mora aqui. "Cara, não aguentei ficar em casa.
Depois do gol da Holanda, estou precisando de companhia." "Meu Deus, o que estamos fazendo aqui?", perguntava, desnorteado, Daniel.
"Isso é maior que eu, é incontrolável, é de dar febre. Que sofrimento!", desabafava, e foi se
espremer contra o vidro, em
busca de uma olhada no monitor.
Finalmente, os pênaltis. Não
deve haver momento mais tenso no futebol, pois o ritmo pára, tudo pára, e os jogadores se
mostram vulneráveis. Os heróis se tornam humanos, e a
platéia silencia. Taffarel, uma
espécie de prisioneiro na frente
da grade de corda, está em close total. Como se estivesse para
ser morto por um pelotão de
fuzilamento, Taffarel podia
nos trazer o grito de independência, ou a morte.
"Calma", dizia Liszt, "a sorte
está com a gente". Daniel desistira de se espremer contra o
vidro e olhava os carros passando na rua. Do meio do absoluto silêncio do povo, o corpo frágil do nosso "soldado" se
ajoelhava no chão e, pela primeira vez, sussurrava: "Vai,
cara, salva a nossa vida".
Não consegui conter as lágrimas. Mesmo de pé, nossas almas estavam todas ajoelhadas,
criando sonhos, fazendo promessas e honrando nossos mitos humildes, assim como os
gregos faziam em suas tragédias. Quem passava por aquela calçada, naquele momento,
deve ter sentido que o fim do
mundo estava perto.
Eu nunca senti nada assim.
Já passei por várias Copas e
sempre optei por ficar sozinho,
sofrer sozinho, decretar meu
estado de calamidade longe do
olhar público. Pela primeira
vez, eu não soube me comportar. Pela primeira vez na vida,
acho que rezei.
E, quando Taffarel jogou a
bola para o lado, todas as nossas almas de joelhos no chão
de Manhattan sentiram um
breve momento de identificação com aquilo que há de mais
sublime, a honra de possuirmos uma identidade poderosa,
jovem, inexperiente, imatura,
cheia de erros, mas aberta e generosa. Esse sentimento nenhuma distância pode atrapalhar, nenhuma fronteira pode
definir, nenhum governo pode
impor.
Sim, a Copa é a nossa guerra,
e nossos heróis não serão confinados a túmulos do soldado
desconhecido.
Obrigado, Taffarel. Muito,
muito obrigado.
E-Mail: geraldthomas@uol.com.br
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