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CARLOS HEITOR CONY
O interesse público não justifica o mau gosto
Quando comecei a trabalhar em jornal, e isso já
vai longe, em meados do século
passado, os lugares-comuns que
mais me irritavam eram o "tríduo momesco" e a "insidiosa moléstia". Tinha dos tríduos, em geral, uma noção piedosa, até mesmo carola, três dias dedicados a
louvar determinado santo, comemorar determinada festa religiosa.
Daí que não entendia o tríduo
dedicado ao rei Momo, que já naquele tempo não era de apenas
três, mas de quatro dias. Achava
que o nome "carnaval" era suficiente para designar aquilo que
também chamavam de folguedos
populares. Chamá-lo de tríduo,
além do mau gosto, era uma profanação.
Quanto à insidiosa moléstia, tive experiência na própria carne.
Fechei uma página do jornal em
que trabalhava, li por alto as matérias, conferi os títulos, as legendas, cumpri as funções rotineiras
de um editor. No dia seguinte, fui
chamado à diretoria. Deixara escapar a palavra "câncer" numa
nota de duas colunas.
Então eu não sabia que o dono
do jornal estava com câncer, fazendo um tratamento dispendioso (e inútil) na Suécia? Não era
chegado, ainda, o tempo dos manuais de redação, mas cada jornal tinha sua lista de conceitos e
preceitos que deviam ser obedecidos. Um deles era se referir ao
câncer como "insidiosa moléstia".
Ignora-se quem por primeiro
juntou ao substantivo "moléstia"
o adjetivo "insidiosa". Tal como
no caso de "ladeira íngreme", se
tivesse registrado a coisa, no Departamento de Direito Autoral ou
no Registro de Patentes Públicas,
estaria milionário. Pois todos os
jornais e revistas se proibiam nomear a insídia da tal moléstia.
Era a marca de pênalti mais ostensiva para o obituário que já estava adrede preparado.
Felizmente esse tempo passou.
A doença começou a ser chamada
pelo nome que lhe era próprio, e
isso ajudou no combate ao mal.
Seria absurdo termos um Hospital Nacional da Insidiosa Moléstia. Cada coisa no seu galho, inclusive as doenças e suas respectivas insídias.
Como sempre acontece, depois
da bonança vem a tempestade ou
vice-versa -e o que era proibido
tornou-se não apenas permitido,
mas escancarado. E, como o câncer teria realmente alguma coisa
de insidioso, ele passou a merecer
da mídia um tratamento VIP,
com direito ao tapete vermelho
dos gráficos, que mostram como
ele nasce, dissemina-se e mata.
Tivemos o recente caso de Mário Covas, que divulgou a doença
por se considerar um homem público que nada deveria esconder
da sociedade. Tudo bem da parte
dele. Nem por isso o tratamento
que recebeu dos jornais, revistas e
TVs foi decente. Compreende-se a
honesta transparência de Covas,
que assumiu a condição humana
em sua integral vulnerabilidade.
Mas, que diabo, sua privacidade
podia ser respeitada sem que com
isso o decantado interesse público
fosse prejudicado.
Qual o interesse público em se
conhecer detalhes de uma colostomia, de uma retenção urinária,
de uma obstrução intestinal? Um
operário anônimo, uma autoridade, um prelado, um artista,
qualquer ser humano pode passar
por esse tipo de problema, sem
precisar ver expostos os gráficos
que mostram a localização do tumor, os procedimentos de higiene
que cabem apenas aos médicos,
às famílias e ao próprio doente.
Cada profissão tem, ou, pelo
menos deveria ter, a sua ética específica. Alguns exemplos: o sigilo
dos padres que ouvem confissões,
dos médicos que tratam seus
doentes, dos advogados que cuidam do interesse de seus clientes,
dos militares em questões de segurança nacional, até mesmo dos
jornalistas em relação às suas
fontes -pessoalmente faço restrições às fontes, constituem uma
praga do atual jornalismo, mas o
que fazer?
Invocar o interesse público para
justificar a invasão da privacidade em estágios terminais de doenças é administrar um tipo de morbidez que não dignifica nem os
profissionais nem os leitores.
No que diz respeito ao câncer, é
fora de dúvida que ele tem sido
desmistificado e que isso representa um saldo positivo na busca
de sua cura radical. Pouco a pouco, e à medida em que a palavra e
a doença deixaram de ser um tabu maligno, a medicina vai obtendo resultados satisfatórios. A
sobrevida e a qualidade de vida
dos atingidos por tão insidiosa
moléstia aumentaram consideravelmente nos últimos anos.
A doença, em si, deixou de ser
um palavrão, uma senha fatal. O
mesmo vem acontecendo com a
Aids, que, apesar de recente e de
tratamento mais problemático,
aos poucos está perdendo o seu estigma maléfico, tornando-se uma
doença sem significado indigno.
Mas, tanto no caso do câncer
como no caso da Aids, os avanços
da ciência dispensam que os
doentes sejam expostos ao discutível "interesse público", tendo
suas radiografias publicadas em
cores, seus exames de laboratório
divulgados, suas rotinas hospitalares oferecidas à morbidez
alheia.
Um vigário do interior contou-me que, em sua igreja, tinha uma
imagem de são Sebastião em tamanho natural, o corpo flechado,
a nudez coberta por faixa de linho vermelho. Todos os anos precisava trocar a faixa, de tanto que
era mexida pelas beatas que tinham o interesse público de ver
tudo.
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