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São Paulo, domingo, 10 de agosto de 2003

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Crítico do "New York Times" vê enfoque anti-semita em filme de Mel Gibson

Entre o CÉU e a TERRA

FRANK RICH
DO ""NEW YORK TIMES"

Meu padrasto dizia: ""Os judeus não mataram Cristo; apenas o atormentaram até a morte". O alívio na minha família judaica foi palpável quando o Vaticano nos absolveu em 1965.
Hoje os judeus americanos não precisam se preocupar com a acusação -ou não precisavam, até que Mel Gibson dirigisse o filme ""The Passion" (A Paixão), sobre as últimas 12 horas de vida de Jesus. Indagado se poderia desagradar, Gibson disse: ""É possível. Não é a intenção. Acho que o objetivo é contar a verdade. Quem transgride tem que analisar seu próprio papel ou culpa".
Os temores vêm sendo alimentados pelo fato de que Gibson financia uma igreja católica tradicionalista que não é filiada à arquidiocese católica apostólica romana. O catolicismo tradicionalista é o nome dado a um movimento separatista que rejeita o Concílio Vaticano Segundo -que inocentou os judeus da acusação de deicídio.
O "Wall Street Journal", que derramou elogios sobre o projeto, relatou que as fontes do filme incluem os escritos das freiras Maria de Agreda, espanhola que viveu no século 17, e Anne Catherine Emmerich, alemã do início do século 19. Foi depois que o rabino Marvin Hier, do Centro Simon Wiesenthal, falou sobre o histórico anti-semita das freiras que um agente de Gibson desmentiu que elas sejam fontes.
Difícil imaginar o filme sendo outra coisa senão um fracasso de bilheteria nos EUA, uma vez que não conta com astros e seja falado em aramaico e latim. Seu verdadeiro efeito incendiário talvez seja sentido fora do país, onde desde o 11 de Setembro vem ocorrendo uma metástase do anti-semitismo e onde Gibson é um ícone ainda maior do que é em casa.
Gibson vem exibindo uma versão a platéias convidadas, mas nem sempre ecumênicas. A lista incluiu apenas um judeu: o estudioso Matt Drudge. Um líder judeu cujos pedidos de assistir ao filme vêm sendo recusados é Abraham H. Foxman, da Liga de Combate à Difamação. "Gibson faz uma seleção daqueles que vão apoiá-lo. Se o filme é uma afirmação de amor, como anuncia, por que não exibi-lo para você ou para mim?", disse Foxman.
Quando pedi para assistir ao filme, fui avisado pelo assessor de Gibson, Alan Nierob, de que o ""New York Times" é uma ""prioridade baixa" para eles porque a ""Times Magazine" publicou um artigo reproduzindo suposta fala de Hutton Gibson, pai de Mel Gibson, que teria dito que o Concílio Vaticano foi ""uma conspiração maçônica apoiada pelos judeus" e que "o Holocausto foi uma farsa".
Um dia, o filme terá que ser visto por todas as platéias. É torcer para que o produto não se assemelhe ao roteiro que circulou na última primavera americana. Esse roteiro -que, segundo Gibson, foi roubado, mas que dizem ter sido vazado por um integrante da empresa do ator- foi desaprovado por um grupo de nove judeus e católicos.
Eles concluíram que os judeus eram mostrados como ""sedentos de sangue, vingativos e avaros", noticiou o ""Jewish Week". Uma das integrantes, Paula Fredriksen, disse que seus colegas ficaram chocados com a semelhança entre o roteiro e as peças antigas sobre a Paixão de Cristo.
O mal já foi feito, e a exibição difamou os judeus. O que ele vem fazendo é fomentar a falsa idéia de que a chamada ""elite do entretenimento" está decidida a jogar abaixo seu filme. De acordo com buscas em bancos de dados, ninguém criticou ""The Passion" quando Gibson foi ao programa de Bill O'Reilly para se defender contra ""quaisquer pessoas" que pudessem atacá-lo. Ninguém ainda pediu a censura do filme.
Quer responsabilize judeus ou não, a estratégia consiste em mostrar como os judeus de hoje estão crucificando Gibson. Idéia parecida pode ser encontrada em livro lançado por um defensor do ator. Em ""Tales from the Left Coast" (Contos da Costa Leste), James Hirsen diz: ""A visão de mundo de certas pessoas se vê ameaçada pela soma da história de Cristo com o talento de Gibson".
Após uma exibição fechada de ""The Passion", a Associação Nacional de Evangélicos anunciou que ""os cristãos parecem constituir uma das principais fontes de apoio a Israel", deixando subentender que esse apoio pode desaparecer se os líderes judaicos ""correrem o risco de provocar o repúdio de 2 bilhões de cristãos em razão de um filme". Foxman diz que acha a declaração ""ofensiva e nociva". ""Se é isso o que significa apoiar Israel, então dizemos não, obrigado a esse apoio."
A verdadeira pergunta é por que Gibson pode querer se dar ao trabalho de atiçar judeus e semear o conflito neste momento histórico frágil.


Tradução Clara Allain


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