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Comida
A preguiça dos grelhados
Restaurantes substituem a qualidade
de pratos preparados lentamente por entediantes carnes feitas na grelha
JOSIMAR MELO
CRÍTICO DA FOLHA
A preguiça gastronômica
inunda os restaurantes. Entre
as muitas coisas que eu detesto
nos cardápios da cidade, ao lado de imprecações que já registrei nestas páginas (contra a ditadura do filé mignon, contra o
menosprezo pelos sushis de
"peixe branco"), devo acrescentar meu protesto contra o
progressivo abandono da cozinha: cada vez mais os restaurantes trocam os pratos preparados lentamente na panela pela fácil conveniência dos "grelhados". Por que gastar tempo,
talento e acuidade culinária
preparando pratos complicados e demorados, quando se
pode apenas empanturrar a
clientela com um bife (de filé
mignon), um peito de frango
(daqueles bem sem gosto) ou
um peixe (já nas homenagens
de sétimo dia) grelhados? Mesmo ignorando que o inverno
torna ainda mais adequados os
pratos opulentos.
Bons tempos aqueles em que
qualquer botequim sempre tinha, ao menos como prato do
dia, verdadeiras preparações
culinárias. Uma costela cozida,
uma rabada, uma carne guisada, um frango à caçadora, uma
feijoada. Ou mesmo um feijãozinho bem temperado! Essas
coisas estão, ao que parece, virando coisa do passado. Parece
estar se consolidando o império do insípido peito de frango
grelhado. Se é que é grelhado
mesmo: o termo em si já é usado de forma enganosa, pois costuma acobertar preparação feita na chapa, e não na grelha
(leia mais abaixo à esq.).
É ótimo comer grelhados, especialmente nas casas de grelhados (como as churrascarias); assim como é ótimo ter
opções de pratos de cozinha
nos restaurantes tradicionais.
Mas estes pratos enfrentam
hoje uma horda de inimigos. De
um lado, os proprietários e
chefs dos estabelecimentos,
que consideram muito mais
prático, menos trabalhoso e
mais barato jogar uma peça de
carne ou peixe na chapa, processo bem mais simples do que
apurar lentamente densos molhos, cozinhar ou assar ternamente carnes e legumes. De outro lado, está uma boa parte do
público, que decidiu abrir mão
dos prazeres sensoriais e das
heranças culturais em nome de
uma duvidosa saúde -que implicaria, na visão simplista destes vaidosos e hipocondríacos,
o abandono dos pratos untuosos, consistentes, em nome de
um perfil esbelto e um coração
eterno (e entediado).
Se o público quer a lei do menor sabor e o restaurateur quer
a lei do menor esforço, está fechado o ciclo, e a boa cozinha
começa a ter seus dias contados. Esse não é um problema
recente. O jornalista americano A. J. Liebling, que passou
sua juventude em Paris e lá voltou diversas vezes até morrer,
em 1963, observou estarrecido
o desaparecimento dos pratos
voluptuosos a que se havia
acostumado: "Pierre, mestre de
todo o repertório clássico da
culinária, admitia que as iguarias elaboradas não eram mais
pedidas. Ao meio-dia, seu restaurante tinha por vezes o aspecto daquilo que os americanos estavam começando a chamar de steak-house. "Só um
quarto dos clientes encomenda
o plat du jour [prato do dia]",
confidenciou-me um dia. "Os
demais comem grelhados. São
os médicos, sabe? As pessoas só
pensam no fígado e na silhueta
e se esquecem do estômago.'"
(Do livro "Fome de Paris").
Em São Paulo restam ainda
alguns bistrôs tradicionais, como o La Casserole e o Freddy,
que servem diariamente pratos
preparados com serena e delongada arte -um boeuf bourguignon (carne cozida no vinho), uma blanquette de veau
(cubos de vitela cozidos com legumes), um cassoulet (cozido
de feijões brancos com carnes).
Alguns botecos mantêm pratos de tradição regional, como o
joelho de porco cozido do Mocotó. Outros, bem populares,
ainda insistem em servir a feijoada, o bife rolê, o frango à caçadora. Vamos torcer para que
resistam, com seus fumegantes
panelões de pratos do dia. Seus
aromas podem fazer a vida valer a pena.
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