São Paulo, quinta-feira, 10 de agosto de 2006

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Comida

A preguiça dos grelhados

Restaurantes substituem a qualidade de pratos preparados lentamente por entediantes carnes feitas na grelha

JOSIMAR MELO
CRÍTICO DA FOLHA

A preguiça gastronômica inunda os restaurantes. Entre as muitas coisas que eu detesto nos cardápios da cidade, ao lado de imprecações que já registrei nestas páginas (contra a ditadura do filé mignon, contra o menosprezo pelos sushis de "peixe branco"), devo acrescentar meu protesto contra o progressivo abandono da cozinha: cada vez mais os restaurantes trocam os pratos preparados lentamente na panela pela fácil conveniência dos "grelhados". Por que gastar tempo, talento e acuidade culinária preparando pratos complicados e demorados, quando se pode apenas empanturrar a clientela com um bife (de filé mignon), um peito de frango (daqueles bem sem gosto) ou um peixe (já nas homenagens de sétimo dia) grelhados? Mesmo ignorando que o inverno torna ainda mais adequados os pratos opulentos.
Bons tempos aqueles em que qualquer botequim sempre tinha, ao menos como prato do dia, verdadeiras preparações culinárias. Uma costela cozida, uma rabada, uma carne guisada, um frango à caçadora, uma feijoada. Ou mesmo um feijãozinho bem temperado! Essas coisas estão, ao que parece, virando coisa do passado. Parece estar se consolidando o império do insípido peito de frango grelhado. Se é que é grelhado mesmo: o termo em si já é usado de forma enganosa, pois costuma acobertar preparação feita na chapa, e não na grelha (leia mais abaixo à esq.).
É ótimo comer grelhados, especialmente nas casas de grelhados (como as churrascarias); assim como é ótimo ter opções de pratos de cozinha nos restaurantes tradicionais. Mas estes pratos enfrentam hoje uma horda de inimigos. De um lado, os proprietários e chefs dos estabelecimentos, que consideram muito mais prático, menos trabalhoso e mais barato jogar uma peça de carne ou peixe na chapa, processo bem mais simples do que apurar lentamente densos molhos, cozinhar ou assar ternamente carnes e legumes. De outro lado, está uma boa parte do público, que decidiu abrir mão dos prazeres sensoriais e das heranças culturais em nome de uma duvidosa saúde -que implicaria, na visão simplista destes vaidosos e hipocondríacos, o abandono dos pratos untuosos, consistentes, em nome de um perfil esbelto e um coração eterno (e entediado).
Se o público quer a lei do menor sabor e o restaurateur quer a lei do menor esforço, está fechado o ciclo, e a boa cozinha começa a ter seus dias contados. Esse não é um problema recente. O jornalista americano A. J. Liebling, que passou sua juventude em Paris e lá voltou diversas vezes até morrer, em 1963, observou estarrecido o desaparecimento dos pratos voluptuosos a que se havia acostumado: "Pierre, mestre de todo o repertório clássico da culinária, admitia que as iguarias elaboradas não eram mais pedidas. Ao meio-dia, seu restaurante tinha por vezes o aspecto daquilo que os americanos estavam começando a chamar de steak-house. "Só um quarto dos clientes encomenda o plat du jour [prato do dia]", confidenciou-me um dia. "Os demais comem grelhados. São os médicos, sabe? As pessoas só pensam no fígado e na silhueta e se esquecem do estômago.'" (Do livro "Fome de Paris").
Em São Paulo restam ainda alguns bistrôs tradicionais, como o La Casserole e o Freddy, que servem diariamente pratos preparados com serena e delongada arte -um boeuf bourguignon (carne cozida no vinho), uma blanquette de veau (cubos de vitela cozidos com legumes), um cassoulet (cozido de feijões brancos com carnes).
Alguns botecos mantêm pratos de tradição regional, como o joelho de porco cozido do Mocotó. Outros, bem populares, ainda insistem em servir a feijoada, o bife rolê, o frango à caçadora. Vamos torcer para que resistam, com seus fumegantes panelões de pratos do dia. Seus aromas podem fazer a vida valer a pena.

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