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MÚSICA/CRÍTICA
A cantora islandesa, que desafia com sua obra, tem seu novo disco, "Medúlla", lançado no Brasil
Com sua voz, Björk flutua entre o arcaico e a mordernidade
DA REDAÇÃO
Björk vem de uma tradição
de fazer de cada um de seus
discos uma peça única, artesanalmente cuidada para desafiar os
ouvidos e romper as barreiras do
conformismo. Em "Medúlla",
que é lançado agora no Brasil, a
cantora islandesa vai mais longe.
Faz um disco dificílimo, mas não
menos belo por isso.
O elemento principal de "Medúlla" é a voz nos seus mais diferentes registros e matizes, do coro
aos sons mais guturais. Mas os vocais são usados de um modo diferente, em que o estúdio se torna
instrumento da cantora.
Quando decidiu que faria um
disco vocal, a única imposição
que se fez era que o resultado não
soasse como Manhattan Transfer
ou Bobby McFerrin. "Medúlla",
obviamente, cumpre esse papel
com facilidade. É, antes, um disco
muito particular, que transita entre o passado e o futuro, o moderno e o arcaico.
Enquanto uma faixa como "Vökuró", baseada em uma composição para piano de Jórunn Vidar,
está mais afinada com o seu belo
arranjo para as 20 vozes do Icelandic Choir, "Who Is it" é um salto ao futuro da música, desacelerando a batida da garage inglesa e
imprimindo texturas cristalinas
de vozes. A canção, em que Björk
divide os vocais com a cantora Tagaq, é uma das que mais apresenta elementos eletrônicos, com
programações de Valgeir Sigurdsson, da banda Múm, de
Mark Bell e do Matmos, além dos
beats vocais do rapper Rahzel, do
The Roots.
Entre esses dois extremos, o disco se desenha ora delicado, ora
desafiador. Cada uma das canções aponta um caminho, rompendo a homogeneidade das duas
últimas incursões de Björk em estúdio: o gélido "Homogenic" e o
introvertido "Vespertine".
"Medúlla" pede para ser decifrado já na primeira faixa, a climática "Pleasure Is All Mine", que
começa soturna, com as vozes do
Icelandic Choir criando uma cama harmônica sobre os vocais
sussurados, picotados em estúdio. Depois se desenvolve em
crescendo, com o canto de Björk
atingindo cada vez mais força até
minguar naquele mesmo coro soturno do começo.
Na seqüência, "Show me Forgiveness", cantada à capela, é inocente como uma canção de ninar.
O transe dessas duas primeiras
faixas é rompido por uma das
canções mais abrasivas do disco:
"Where Is the Line". Batidas quebradas de beatbox encontram o
baixo vocal pulsante de Mike Patton. Os arranjos de vocal são
construídos de forma a criar um
bloco rígido de som a partir de intercalações entre as vozes mais
graves e as mais agudas, tencionado o baixo e o beatbox. Sobre essa
base, Björk canta "Eu quero ser
flexível/../ Eu sou elástica", como
se quisesse romper essa rigidez
formal com a força das palavras.
As duas faixas seguintes são justamente "Vökuró" e "Who Is it".
Indo de um extremo a outro, a islandesa mergulha na canção mais
bonita do disco, "Submarine",
uma prece para voltar à vida após
meses na redoma da maternidade. O fabuloso veterano Robert
Wyatt, do mítico Soft Machine, e
dono de uma das vozes mais desamparadas do pop, faz o dueto
com Björk em "Submarine". A
construção da música mostra o
desligamento do tema, indo dos
vocais gravíssimos, uterinos, até
um desfecho agudo, com a frase
"Tire-nos deste sono pesado e
profundo" ecoando com doçura.
A mesma doçura que impregna
a delicada "Desired Constellation", construída sobre uma programação sutil de timbres médios, pontuados por um baixo esparso, e cantada com grande extensão vocal por Björk.
Depois vem a faixa mais conhecida, "Oceania", cantada nas
Olimpíadas, com a sua batida
quebrada e com os vôos vocais do
London Choir. É o momento em
que o disco começa a ser descoberto de verdade e a voltar para alguns territórios explorados anteriormente, como se dá no contraste voz/coro de "Sonets/Unrealities XI", em que Björk volta a
gravar um poema de E.E. Cummings, e em "Ancestors", que
apresenta um piano minimalista
que se impõe a algumas das variações vocais mais arrojadas, com
supiros, respirações, lamúrias e
vocais cortados sucedendo freneticamente.
Já em "Mouth's Cradle" há mais
coro sobre eletrônica seqüencialista, que é domesticada por uma
batida quebrada. De novo, Björk
intercala os mais diferentes tipos
de vocal, deixando sua voz improvisando em primeiro plano, e explorando os acidentes de vozes
editadas e seqüências de coro. As
mesmas que seguem pela breve e
abstrata "Midvikudags".
O fim chega com a dançante
"Triumph of the Heart", uma
lembrança de que Björk ainda é
aquela mesma cantora que enveredou pela eletrônica com "Debut" e não cansou mais de se colocar à frente de seu tempo.
(GUILHERME WERNECK)
Medúlla
Artista: Björk
Gravadora: Universal
Quanto: R$ 35, em média
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