São Paulo, sexta-feira, 10 de setembro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CARLOS HEITOR CONY

Como os justos salvam a própria pele

Foram ler os jornais. Marcelino ficava sem veia, minguava-lhe o verbo quando Luíza estava ausente. Mas logo um calor novo apossou-se dele. Leu em voz alta a notícia de um acidente em Copacabana: explodira o tanque de óleo que alimentava o motor de bombear os esgotos. A explosão, ocorrida dentro das galerias subterrâneas, provocara deslocamento de ar, os tampões das ruas foram atirados à distância, com grandes estrondos. E houve mortos e feridos.
Da notícia, Marcelino tirou conclusões terríveis. Eram os Tempos que chegavam. A terra vomitava fogo e fezes. E Copacabana, o bairro do pecado, símbolo da moderna Babilônia, começava a pagar por seus crimes. A podridão do subsolo explodira. Em breve, o bairro inteiro seria tragado pela porcaria que atolaria os mais altos edifícios. E depois viriam as ondas. Libertadas de seus limites traçados no Gênesis, varreriam tudo, não ficaria pedra sobre pedra, molécula junto de molécula.
Bartoleo quis saber das ondas. Temia-as, nunca quisera nada com o mar, só de ver ficava tonto, não desejava que o mar chegasse até o Catumbi e entrasse pela sua sala, arrebatando-o para seus abismos.
Marcelino garantiu que estava nos Livros. A Próxima Vinda importava numa avalancha de ondas que tragariam todas as Babilônias onde a Grande Meretriz deitasse a correr de seus seios o vinho da fornicação. E os Tempos estavam próximos, não podia haver mais dúvida.
Alarmado ante as evidências, Bartoleo perguntou se não havia um modo de escapar a tão universal castigo. Marcelino prometeu que "daria um jeito". Como participante dos grandes movimentos que varreriam a civilização da face da Terra, fora avisado pelo Astral de que haveria um lugar imune ao flagelo. Comunicara a revelação à Sociedade à qual era filiado; havia necessidade de preservar os Justos. E o lugar não era muito longe, ali mesmo, em Miguel Pereira, sítio de gravitação do globo terrestre por ocasião dos cataclismos.
Bartoleo aprendia cada vez mais. Não sabia nada a respeito do eixo de gravitação, a Terra era uma bola que rodava e já tinha ido gente para a fogueira por causa disso. Era tudo o que sabia e achava que era muito. Entretanto, havia o eixo de gravitação, bem às suas barbas, em Miguel Pereira!
Decidiram fazer um barraco por lá. Bem modesto, apenas para se abrigarem das celestiais iras. Fizeram planos. Animado pelo assunto, Marcelino resolveu botar cartas na mesa. Os Tempos estavam próximos. Para escaparem ao castigo, os eleitos teriam de se refugiar em abrigos seguros que só o Astral poderia indicar, pois os castigos destinavam-se aos impuros, aos que bebiam o vinho da fornicação. A Sociedade que o tinha abrigado fora recompensada pelo Centro das Forças Ocultas com a indicação do único lugar de salvação. E era em Miguel Pereira.
Foi essa a explicação de Marcelino. Mas eu conhecia o assunto, deu em escândalo, os jornais se meteram nisso. Havia, com efeito, um lugar destinado a proteger a carcaça dos justos. Apenas não fora Marcelino o intermediário nessa questão de salvarem os eleitos a própria pele. Fora o próprio Grão-Mestre que recebera o aviso. Em transe espiritual, comunicou que os Tempos só respeitariam as terras situadas num raio de 20 quilômetros de determinado ponto de Miguel Pereira. Por esse ponto passaria o eixo de gravitação da Terra.
Singular coincidência deu muito barulho. Esses 20 quilômetros de raio abrangiam a fazenda do sogro do mesmo Grão-Mestre. Morto o velho, os herdeiros ficaram em apuros para vender terras inúteis, sem ouro, sem cobre, sem petróleo, mas arranjaram coisa melhor, o eixo de gravitação do Globo Terrestre.
Bem verdade que outra Sociedade Oculta, rival da de Marcelino, procedeu a consultas ao mesmo Astral, recebendo mensagens não só excomungando a Sociedade da Rua da Quitanda, como revelando que o lugar isento aos flagelos não era Miguel Pereira, mas Jacarepaguá, onde não passaria o eixo de gravitação da Terra, mas, em compensação, recebera a projeção de deriva de 99,079 graus da estrela Sírius por ocasião do nascimento do Nosso Senhor Jesus Cristo.
A Sociedade de Marcelino revidou a afronta, fez novas consultas ao Astral, recebeu a confirmação da mensagem anterior e o esclarecimento de que a sociedade rival assim procedia por motivos ímpios: o Grande Espírito que presidia a dissidência tinha loteamento no largo do Tanque.
Para Bartoleo, essas disputas científicas em torno do eixo da Terra ou da deriva de 99,079 graus de Sírius pouca importância tinham. Importante era a opinião do amigo. Iria para onde Marcelino fosse. O fogo não o queimaria, a água não o tragaria, o tufão não o carregaria, a desintegração não o romperia em átomos pelo espaço afora. Estaria a salvo em Jacarepaguá ou em Miguel Pereira, bastava estar ao lado de Marcelino. O próprio Marcelino tranqüilizou Bartoleo: -Deixa comigo. Eu estarei "lá"!


Texto Anterior: "O Alucinado": Buñuel vasculha mente de paranóico
Próximo Texto: Panorâmica - Personalidade: Morre o espanhol Fernández Teixeiro
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.