São Paulo, quinta-feira, 10 de outubro de 2002

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TEATRO

Peça que estréia amanhã em São Paulo contrapõe a amizade e a criação artística ao estigma de "década perdida"

Paiva observa os anos 80 em "No Retrovisor"

Lenise Pinheiro/Folha Imagem
Marcelo Serrado e Otávio Müller em cena de "No Retrovisor", peça de Marcelo Rubens Paiva


VALMIR SANTOS
DA REPORTAGEM LOCAL

"Só com um grande amigo a gente pode ficar em silêncio."
É Marcos, o mais resistente a mudanças, devoto dos Sex Pistols, finalmente baixando a guarda perante Ney, amigo que não vê há anos, desde que este ficou cego em um acidente e se tornou cantor pop romântico à la Wando.
Marcos e Ney têm 30 e poucos anos. Nesse reencontro, em meio à bagunça da sala do apartamento do primeiro (seu bebê dorme em um canto), resgatam afinidades de duas décadas atrás, quando atores movidos a utopias e rupturas -faziam esquetes ou intervenções como dupla de besteirol-, e constatam diferenças sacramentadas pelo tempo, do gosto musical às idéias.
"No Retrovisor", nova peça de Marcelo Rubens Paiva, que estréia amanhã no teatro Augusta, em São Paulo, põe no espelho a pulsão de vida dos 80, década estigmatizada como perdida, segundo o autor.
Sobretudo por meio da música e do teatro, Paiva, 43, pretende mostrar que aquela geração -também a sua- não pode ser interpretada apenas sob o viés estreito do tédio. "Foi uma época pouco valorizada", afirma o escritor e articulista da Folha.
Para além da aura gótica, por exemplo, houve a afirmação solar de grupos de comediantes como o carioca Asdrúbal Trouxe o Trombone (1974-83) e o paulista Ornitorrinco (fundado em 77). O prólogo da peça, aliás, homenageia essa turma que improvisou coletivamente e se deu bem.
Como o personagem que lembra a primeira vez que assistiu ao espetáculo "Trate-me Leão", do Asdrúbal, Paiva também ficou "chapado" quando viu atores falando a língua das ruas, usando gírias e palavrões. De quebra, a trilha incluía o reggae de Bob Marley, outra descoberta.
"Os anos 80 não são o único personagem da peça", ressalva Marcelo Serrado, 35. "É também um texto sobre a amizade", diz o intérprete de Ney.
Para Otávio Muller, 37, que vive Marcos, "No Retrovisor" traz "diálogos contundentes que escapam do opaco". "Há muita sordidez e humor na história", diz. Em acertos dúbios, construções e desconstruções do ontem e do hoje, Marcos e Ney giram em falso tal qual Hamm e Clov em "Fim de Jogo", de Samuel Beckett (1906-89).
Paiva consente. Não à toa, a metáfora da cegueira também é explorada no reencontro do "brega" Ney e do "anarquista" Marcos. Chocam-se em suas concepções de mundo, mas tampouco recuam. São o que são.
"Não há julgamento, certo e errado", afirma o diretor Mauro Mendonça Filho, 37. Antigamente, diz ele, o mal era ideológico. Isso não corresponde mais ao cenário dos muros caídos na nova velha ordem mundial e pessoal.
Item importante na montagem, Mendonça Filho quer que a música sirva de movimento de memória ou de "ponte" (The Strokes, Nirvana, White Stripes), mas sem excesso. Ao contrário, há silêncios fundamentais neste Paiva, que vê sua dramaturgia em escaninho diverso das comédias sobre fantasmas sexuais e comportamentais da vida a dois. Estão lá traições, onanismos, mas eles agora espreitam o drama.



NO RETROVISOR. De: Marcelo Rubens Paiva. Direção: Mauro Mendonça Filho. Cenografia: Cristina Novaes. Iluminação: Wagner Pinto. Com: Marcelo Serrado e Otávio Muller. Onde: teatro Augusta (r. Augusta, 943, SP, tel. 0/xx/11/3151-4141). Quando: estréia amanhã, às 22h; sex., às 22h; sáb., às 20h e 22h; dom., às 19h. Quanto: R$ 30 e R$ 35 (sáb.). Até 22/12. Patrocinador: Petrobras.


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