São Paulo, sábado, 10 de outubro de 2009

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LIVROS

Crítica/ "Meridiano de Sangue"

McCarthy reinventa o Velho Oeste

Romance do autor norte-americano que modernizou o western e antecedeu a "Trilogia da Fronteira" ganha nova edição

JOCA REINERS TERRON
ESPECIAL PARA A FOLHA

Depois de explorar ao seu modo raro o romance gótico em seus quatro livros iniciais, Cormac McCarthy alcançou a difícil unanimidade ao modernizar o western com "Meridiano de Sangue", livro de 1985 ora reeditado no Brasil. Aproximando do alto modernismo um gênero associado ao cinema e ao folhetim pulp, o escritor americano passou a ser comparado a Melville e a Faulkner, a ser elogiado por Harold Bloom e a permanecer perto demais do cânone.
Em diversos aspectos, o universo fronteiriço de "Meridiano de Sangue" (a divisa com o México; o limiar entre a adolescência e a idade adulta de seu protagonista; a extinção do Velho Oeste frente ao século 20) seria aprofundado e expandido na posterior "Trilogia da Fronteira" (publicada aqui pela Companhia das Letras), assim como sua linguagem plena em oralidade e de intenso apelo visual ("que une concisão e força poética, tom coloquial e vigor oratório", afirma com grande acerto a orelha anônima de "A Travessia").
Por meio das figuras quixotescas de rapazes muito jovens em busca de um mundo e de um modo de vida que já não existem, a exemplo de John Grady Cole e Billy Parham (da "Trilogia") ou mesmo o kid de "Meridiano de Sangue" (cabe aqui -não cabe, na verdade- a ressalva à opção infeliz de não traduzir "kid" por "garoto" na presente edição, retirando assim o personagem do anonimato que é representativo de sua anomia e do caráter metonímico de sua relação com o universo sem lei que habita), McCarthy fixa o estado caótico e transitório da passagem do último estágio da colonização americana para aquele no qual o Estado está presente (em geral chamado de "civilização").
E que preço se paga para se atingir esse status. Baseado parcialmente em episódios reais, "Meridiano de Sangue" narra a trajetória de um garoto de 14 anos órfão de mãe que foge de casa e, entre vários percalços entre Texas e México, adere à trupe do sanguinário caçador de índios John Joel Glanton e do juiz Holden (que é a mais pura representação do mal).
As desventuras pelas quais passa o "kid" fazem o inferno parecer apenas um spa cuja sauna anda meio desregulada.
A brutalidade em McCarthy tem sempre o apelo real da presença das fezes e do medo que a geram. Não há nele resquícios de nenhum heroísmo, e seus homicidas e vítimas -não importa o papel que cumpram- gemem e bufam e defecam ao matar e morrer. Essas vidas dão fim e se extinguem sem brilho nenhum, nem mesmo o das lâminas das facas (que são foscas e não refletem nada).
As cenas de batalhas de "Meridiano de Sangue" estão entre as mais vívidas da história da literatura. Quase sempre relacionada a um certo apocalipse dos valores masculinos, a obra de Cormac McCarthy parece mais indicativa da violência como motor a extinguir e regenerar aos ciclos a ideia de humanidade.
Do mesmo modo como o big bang gerou o Universo, os homens de seus romances nascem e renascem da lama e do caos desse beco sem saída e do big bangue-bangue cruel da existência.

JOCA REINERS TERRON é escritor, autor de "Sonho Interrompido por Guilhotina" (Casa da Palavra).


MERIDIANO DE SANGUE

Autor: Cormac McCarthy
Tradução: Cássio de Arantes Leite
Editora: Alfaguara
Quanto: R$ 49,90 (352 págs.)
Avaliação: ótimo




Texto Anterior: Documentário que chancela fuga de Polanski estreia na Suíça
Próximo Texto: Réplica: Resenha expôs leitura apressada de obra
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.