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ENTREVISTA
Berliner agora traz Hitler "popstar"
NELSON DE SÁ
da Reportagem Local
SÉRGIO DE CARVALHO
especial para a Folha
Localizado a poucas quadras do
que foi o muro de Berlim, na Alemanha, o Berliner Ensemble, criado por Bertolt Brecht em 49, foi a
maior referência do teatro político
na segunda metade do século.
A queda do muro em 89 abriu
uma crise de referências no próprio grupo, bem como no mundo.
A morte de Heiner Müller em 95,
remanescente do início brechtiano, fechou de vez o ciclo.
O ator Martin Wuttke, 34, e o diretor-geral Stephan Suschke, 39,
lideram hoje a companhia. Em entrevista, falam dos possíveis novos
caminhos para o teatro político e
da montagem de "A Resistível Ascensão de Arturo Ui", que estreou
dois anos atrás e é o maior sucesso
da companhia nos anos 90.
Escrita por Brecht (1898-1956) e
dirigida por Müller (1929-95), com
Wuttke como protagonista e
Suschke como assistente de direção, "Arturo Ui" é uma parábola
da ascensão de Hitler, relacionado
a um gângster de Chicago.
A peça faz hoje às 20h, no teatro
Sesc Anchieta, a segunda e última
apresentação em São Paulo. É a
primeira vez que o Berliner Ensemble se apresenta no Brasil.
Folha - Vocês nasceram na ex-Alemanha Oriental? E vocês se diriam socialistas, ou verdes?
Martin Wuttke - Eu sou alemão-ocidental e nunca fui membro de um partido, nem serei. E
dar a voz significa perder a voz.
Como na Alemanha o voto não é
obrigatório, eu não dou meu voto.
(É um trocadilho de Wuttke:
"voz" e "voto", em alemão, são
expressos com o mesmo termo.)
Stephan Suschke - Eu também
nunca fiz parte de partido, nem
pretendo. Evidentemente, trabalhando anos no Berliner, eu me
autodescreveria como tendo uma
consciência de esquerda. Mas a
história dos últimos 50 anos mostrou que as boas intenções, quando instrumentalizadas por partido, acabam sufocadas, morrem.
Folha - "Arturo Ui" é a peça de
maior sucesso do Berliner Ensemble depois da queda do muro. Ela
reflete de alguma forma as exigências da Alemanha reunificada?
Suschke - Talvez o contrário,
talvez seja um sucesso porque não
responde à situação atual.
Wuttke - O que a peça descreve
não tem ligação direta com os problemas da Alemanha reunificada.
Mas há dois aspectos da encenação
que dizem respeito à atualidade.
Um é o efeito "popstar" na política, que é mostrado permanentemente, e o outro é que ela corresponde à sensação generalizada, em
toda parte, de que há uma relação
entre política e criminalidade.
Folha - A peça apontaria assim a
atualidade de Brecht?
Suschke - Na Europa, até alguns anos atrás, poderia se pôr em
dúvida a atualidade de Brecht. Mas
mesmo na Alemanha, nos últimos
tempos, as peças estão ganhando
atualidade, relevância bem maior.
A sociedade se move em ondas, em
movimentos circulares, e as peças
voltam a ganhar atualidade na
mesma medida em que a sociedade evolui. E hoje os efeitos das
montagens na Alemanha são de
uma espécie diferente. Alguns são
políticos, mas outros são efeitos
que antes nem seriam imagináveis.
Folha - Vocês já disseram que o
Berliner precisa de uma redefinição política, do que seria o teatro
político depois da queda do muro.
Já têm hipóteses de trabalho?
Wuttke - É difícil dizer se eu já
tenho uma redefinição do teatro
político. Basicamente, a questão é
se o teatro ainda pode assumir
uma função, digamos, revolucionária, ou se hoje o teatro tem que,
forçosamente, assumir um papel
dentro do Estado, e portanto de
sustentáculo do Estado. Por exemplo, se o teatro tem o poder de se
transformar em advogado de determinadas pessoas privadas de
sua liberdade, ou se tem que renunciar a isso e assumir os próprios privilégios, como o de poder
viajar às custas do Estado.
Folha - Um exemplo oposto?
Wuttke - Uma das tarefas políticas a que o teatro poderia se dedicar, se ele se considerasse teatro
político, seria encontrar algo assim como o tão falado terceiro caminho. Depois da queda do muro,
tudo o que antes era rotulado de
esquerda entrou em descrédito na
nova Alemanha unificada. Na verdade, a queda do muro significou
o triunfo de um poder. O capitalismo venceu o socialismo, e com isso muitas das conquistas do socialismo se perderam, tanto na área
política como na intelectual. E
muitas forças intelectuais da ex-Alemanha Ocidental também perderam o ímpeto. Uma tarefa política possível, para um conjunto como o Berliner Ensemble, seria descrever essa situação política da
Alemanha a partir de uma nova
perspectiva. Encontrar um novo
ponto de vista político para descrever a situação presente.
Folha - Suschke diz que o efeito
de distanciamento pode ser resumido dizendo que os personagens
bons, para serem interessantes,
devem ter aspectos positivos.
Quais são os aspectos positivos
que você trabalhou no Arturo Ui?
Wuttke - Aspectos positivos?
(risos) É fácil. Arturo Ui é um personagem fascinante. E o que eu
busco mostrar nas apresentações é
que nós podemos e queremos segui-lo, porque exerce um forte fascínio. É um bom "entertainer".
Suschke - É a grande diferença
entre a política e a Igreja Católica.
(risos) Na Igreja, você não precisa
ser um bom "entertainer" para
ser líder. (risos) Na política é preciso ser um bom "entertainer".
Wuttke - Na Igreja Católica, a encenação já é muito forte. Os atores
não precisam ser tão bons.
Suschke - Por isso é uma especial
alegria chegar ao Brasil imediatamente depois do papa. (risos)
Folha - A cena em que um ator
ensina Arturo Ui a se comportar foi
inspirada num ator de Munique
que ensinou Hitler. O que exatamente ele ensinou a Hitler?
Wuttke - Não há detalhes a respeito. O que existe são as fotos de
Hitler, em que assume diferentes
poses. Mas não se sabe como foi
este, digamos, curso. O que a gente
vê, ao longo dos cinejornais nos
quais ele aparece, é que tinha uma
linguagem corporal, com movimentos estilizados que se repetiam, e que eu assumo na atuação.
Para mim foi importante verificar
que o modo de Hitler se apresentar
diante do público era além de natural. Ele praticamente não tinha
uma forma natural de agir. Tudo o
que vemos dele é algo que criou
para si mesmo. E ele se ocupava
permanentemente em verificar as
impressões que causava nos outros, com seu jeito de falar, sua atitude corporal. Por exemplo, ao
vestir um fraque, ao se movimentar em meio a empresários.
Suschke - Ele tinha um conceito
de marketing de sua própria figura
semelhante ao dos "popstars".
Podemos dizer que ele foi o primeiro "popstar" do mundo.
Folha - Como um ator tão artificial, ou tão antinaturalista, conseguia tamanha identificação?
Wuttke - Por que um personagem como Michael Jackson tem o
efeito que tem sobre o público,
sendo que toda a sua movimentação, sua aparência, é artificial? As
pessoas realmente choram, ficam
comovidas. É justamente por causa da sua artificialidade. Numa cerimônia de casamento numa igreja, o que emociona as pessoas que
assistem é a formalização. É a antinaturalidade que causa o efeito
mais profundo sobre o público.
Suschke - É justamente o caráter
estranho que esses personagens
têm que lhes dá uma espécie de divindade. Hitler, a partir do momento em que ingressou na política, se auto-elaborou como personagem. Ele escreveu a sua autobiografia mudando detalhes do seu
passado, inclusive, depois, mandando matar pessoas que pudessem dar testemunho contrário ao
que tinha escrito. Ele foi o artífice
de sua própria figura. Aliás, ele
pretendeu ser um artista. Pena que
não conseguiu o ingresso na academia de artes de Viena. Ele amava
Wagner, e amava o conceito da
obra de arte integral. E pode-se dizer até que ele via a si mesmo como
uma obra de arte integral.
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